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Sexta-feira, 1/8/2008 País pequeno, inferno grande Adriana Baggio A noite de sábado estava quente, considerando que era julho em Montevidéu. O clima cálido foi uma surpresa para quem encheu a mala de casacos de lã e cachecóis, esperando até, quem sabe, ver neve. Zanzando de carro pelas ruas do bairro chique de Punta Carretas, escolhemos o El Tigre pela cara e pelas mesinhas na calçada, todas cheias. Nesta parte de fora, muitos jovens. Apesar da temperatura alta, melhor entrar. Curitibana calejada sabe que a noite esfria e o vento gela a comida. Descobri que uma dúzia de senhoras entre 60 e 70 anos também pensava como eu e preferia o interior do lugar. Não era nenhum aniversário do clube de canastra ou reunião da terceira idade. Elas estavam em mesas separadas e, aparentemente, não se conheciam. Eram mulheres mais velhas, talvez viúvas, talvez divorciadas, saindo sábado à noite para tomar um vinho e saborear uma carne na parrilla. Coisa rara de se ver no Brasil. Qualquer bar ou restaurante em Montevidéu tem sua parrilla, seja grande ou pequena. Neste tipo de churrasqueira, as carnes assam em uma grelha inclinada, somente com o carvão em brasa abaixo delas. O carvão pegando fogo fica em um compartimento separado, e as pedras são levadas pouco a pouco para baixo da grelha. Dentre as delícias que podem ser feitas na parrilla, a mais tradicional é a parrillada, com miúdos de boi, lingüiças e embutidos. Mas também se preparam contra-filés, picanhas, frango e legumes. No El Tigre, além de um suculento e rosado pedaço de entrecôt (contra-filé), pedimos uma batata com queijo roquefort. Primeiro, a batata é assada inteira, envolta em papel alumínio. Depois de cortada ao meio e coberta com o roquefort, é colocada novamente na parrilla para gratinar. Salgada por conta do queijo, contrasta e combina com o filé assado sem sal, à moda do Uruguai e da Argentina. Não sei se pelo corte da carne ou pela forma de preparo, mas o tempero não faz nenhuma falta. Levou algum tempo até a gente sentar e poder saborear esse jantar. O interior do bar também estava lotado e aguardamos a mesa no balcão. Escolhemos um vinho, que lá é muito mais acessível do que no Brasil. Assim como a parrilla, a carta de vinhos está disponível em todo tipo de lugar, dos mais simples aos mais sofisticados. A variedade de uva mais comum no país é a tannat. Os vinhedos se concentram no departamento de Canelones, uns 40 km ao norte de Montevidéu. Estrada na região de Canelones: bonita e ótima de dirigir, como em todo o Uruguai. Tínhamos visitado essa região um dia antes. Os mapas que recebemos na Aduana mostravam detalhadamente as cidades e seus atrativos turísticos. Em Canelones está a maior parte dos vinhedos de todo país, bem como a maior produção de frutas e hortaliças. É uma bela região, ainda bastante plana, mas onde já se observam discretas elevações de terreno. Me interessava visitar as vinícolas e conhecer o Museu da Água, localizado próximo a uma represa, na localidade de Água Corrientes. Tomamos a Ruta 5, que liga Montevidéu ao norte do país, e seguimos rumo a Canelones. Na minha cabeça, imaginava encontrar belas e rústicas propriedades, algo entre a Toscana e a Borgonha, com uma pitada de Serra Gaúcha. Imaginava construções de pedra, quem sabe de madeira ou tijolinho à vista, com adegas escuras onde provaríamos o tannat e outras variedades. Imaginei também que tudo isso estaria concentrado em um mesmo lugar, uma bodega após a outra. Por isso, desdenhamos a entrada da vinícola Juanicó, na cidadezinha de mesmo nome, logo às margens da Ruta 5, apesar de já termos percebido que era a mais popular do país (todos os menus tinham uma propaganda dos vinhos Juanicó). Vamos até Canelones, o paraíso das bodegas! Na beira da estrada, vinhedos, vinhedos e mais vinhedos. Seguindo por estradinhas vicinais, fomos procurando as vinícolas indicadas no mapa. Meu sonho de Borgonha e Toscana azedou ao perceber que as vinícolas se parecem com outras fábricas quaisquer, com suas paredes brancas de alvenaria e tonéis de aço. Algumas até tinham um aspecto mais artesanal e romântico, mas ninguém parecia estar lá para receber os turistas brasileiros, inconvenientes no único carro a perturbar o sossego daquelas estradinhas na hora do almoço. Com certeza existem outros locais mais estruturados e que recebem visitantes, mas eles não estavam no nosso caminho. A decepção não parou por aí: o Museu de Águas Corrientes estava fechado e o segurança da propriedade não nos deixou nem ao menos descer do carro para tirar uma foto do edifício. Essa aí que vocês estão vendo é clandestina, tirada com o automóvel em movimento, já de saída. O mais próximo que consegui chegar do Museu de Águas Corrientes. Na volta a Montevidéu passamos ainda por Santa Lucía, à beira do rio de mesmo nome, e que teve o primeiro hotel turístico do país, o Biltmore, onde Gardel cantou para o Nacional del Uruguay (grande rival do Peñarol). Algumas belas e imponentes casas, de moradores ou de veraneio, não deixam duvidar do passado rico e glorioso dessa cidade, que agora é apenas mais um lugarejo pacato do interior. A estação de trem ainda funciona, mas o Hotel Biltmore, bem em frente, estava fechado. Ainda no caminho de volta, entramos em Sauce, onde nasceu o general Artigas, o herói da independência deles. Toda cidade do Uruguai tem uma rua, uma praça ou um busto do Artigas. Em Sauce, restam apenas ruínas da sua casa. E a gente, morrendo de fome, nem desceu para ver. Voltamos correndo para Montevidéu, pelas Rutas 6 e 7, e acabamos não visitando a bodega Juanicó. Tudo isso era assunto de conversa durante a espera no balcão do El Tigre. Falávamos sobre a beleza dos parreirais de Canelones, elogiávamos as estradas maravilhosas e seguras do Uruguai, a organização do turismo no país, que nos permitia ter mapas e informações sobre qualquer cidade que desejássemos visitar. Admiramos também a devoção e o respeito ao General Artigas, comparado à relação que os brasileiros têm (têm?) com seus heróis. A Plaza Independecia, bem no centro de Montevidéu, exibe uma grande estátua eqüestre de Artigas. Embaixo dela, uma escadaria leva a este monumento, onde estão guardadas as cinzas do general. Nas paredes, textos em relevo contam brevemente a trajetória do herói. É de arrepiar. E como os uruguaios são muito simpáticos, o barman começou a conversar conosco. Compartilhamos com ele nossa admiração e encanto pela sua terra. E depois de algum tempo, ele soltou: "país chico, infierno grande". O Uruguai tem pouco mais de 3 milhões de habitantes. Metade deles mora em Montevidéu, uma cidade linda, com 23 km de avenida urbanizada beirando o Rio da Prata, onde as pessoas correm, andam de bicicleta, passeiam com os cachorros, se reúnem com as famílias e, é claro, tomam seu indefectível chimarrão. Um pouco mais ao centro, porém, os imponentes prédios da Av. 18 de Julio revelam os efeitos de um país mal saído de uma grande crise. As construções permanecem inteiras, mas estão sujas de fuligem, conferindo um aspecto cinza ao centro da cidade. Nosso amigo barman diz que as feridas do tempo da ditadura ainda não estão fechadas, e muitos problemas permanecem escondidos debaixo do tapete. Palacio Salvo, na Plaza da Independencia, construído entre 1922 e 1928, quando o país era conhecido como a Suíça da América do Sul. Como qualquer grande cidade, Montevidéu também tem seus mendigos, suas favelas, seus problemas sociais. Eles estão mais visíveis a quem, como nós, andou de carro pelo país. Entramos e saímos diversas vezes da capital, ao visitar cidades próximas. E as periferias não têm nada do charme dos bairros às margens do Rio da Prata. A avenida que beira do Rio da Prata, chamada de rambla, tem de tudo: calçadão, praças, parques, farol, pedras. Deixar um pouco o roteiro e o estilo mais turístico de viajar permite um contato mais próximo com o país visitado, para o bem e para o mal. No nosso caso, 90% para o bem, e é por isso que eu voltei ao Brasil apaixonada pelo Uruguai. Quanto aos 10% restante... No domingo, dia seguinte ao El Tigre, pela manhã, fechamos a conta no Ibis e fomos visitar a feira de antigüidades e artesanato da rua Tristán Navarro, transversal da 18 de Julio, no centro da cidade. Estacionamos o carro uma quadra depois da feira, ao lado de uma loja de bebidas e doces finos. Saímos em busca de uma casa de câmbio aberta, não encontramos. Demos uma volta na feira e, sem pesos uruguaios para fazer compras, voltamos ao carro. Ele tinha sido arrombado e nos levaram uma bolsa de viagem e uma mochila com sapatos. O dono da loja de bebidas foi extremamente gentil e nos levou à delegacia, voltando à pé as quase 10 quadras que nos separavam do seu trabalho. A polícia foi extremamente paciente (o portunhol serve para se comunicar bem no hotel, no restaurante, na loja, mas fora isso não é tão simples assim se fazer entender com exatidão) e, de posse do BO, seguimos os 180 km viagem até Colonia del Sacramento. País pequeno, inferno grande. Pode ser que as coisas não sejam fáceis para os uruguaios. Eles tiveram um dos mais cruéis regimes ditatoriais da América do Sul, ainda relativamente recente. Não há uma economia expressiva no país, os carros são velhos, os prédios estão encardidos. Mas os homens são lindos, as pessoas são gentis, o pôr-do-sol no Rio da Prata é deslumbrante, a comida é ótima, a cerveja é de litro, o vinho é barato, as estradas são lisas e o país é perto, muito perto. Ele pode ser pequeno, mas desperta uma grande vontade de voltar. Espetáculo de fim tarde, visto do Faro Punta Brava. Estrategicamente construído no ponto mais saliente da região, alterna luz branca e vermelha, para que os marinheiros o diferenciem de outros faróis, bóias e balizas que sinalizam a área. Adriana Baggio |
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