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Terça-feira, 5/8/2008 As armas e os barões Rafael Rodrigues A matéria-prima da literatura é a vida. Mesmo em textos fantásticos. Os personagens de um livro podem ser magos, elfos, cabeças falantes, meninos bruxos etc., mas o que move qualquer história são os sentimentos, as relações entre os personagens (sejam eles seres humanos ou não) e os conflitos entre eles. Então, por mais que um romance, conto ou poesia seja nada mais que pura ficção, ao menos a inspiração para sua concepção, sua "fagulha catalisadora", digamos assim, é e sempre será a realidade. É o caso do romance As armas e os barões (Agir, 2008, 174 págs.), de Flávio Moreira da Costa. O livro é parcialmente autobiográfico e, se não fosse, se fosse totalmente ficção, certamente não teria sido escrito. Afinal, o que provocou a escritura do romance foram as situações que Flávio Moreira viveu na época da ditadura. Se ele não tivesse sido preso e, algum tempo depois, em 1966, ganhado uma bolsa de estudos do governo francês e não tivesse ido para a Europa, certamente As armas e os barões não existiria. (Essa afirmação vai de encontro a uma teoria de Terry Eagleton. Para Eagleton, mesmo que, por exemplo, Dostoiévski não tivesse nascido, Crime e Castigo seria escrito. Alguém escreveria Guerra e Paz, mesmo que Tolstói não existisse. É óbvio que é uma teoria furada.) Mais conhecido do grande público pelas antologias que organizou e tem organizado (são mais de vinte), Flávio Moreira da Costa é autor de uma considerável e respeitável obra de ficção (são mais de quinze livros), que tem sido reeditada pela editora Agir. Apesar de ter vencido dois prêmios Jabuti e outros tantos, Flávio é um autor que só agora está sendo descoberto por muitos leitores. Suas obras estavam fora de catálogo, e por isso é louvável o trabalho da editora Agir, que, além de reeditar seus livros, vem colocando no mercado títulos inéditos, como o único volume de poesias do escritor gaúcho de nascença e carioca de vivência, Livramento. Segundo volume da Trilogia do Espanto (composta por O Desastronauta e o ainda inédito cujo título provisório é Diário estrangeiro), As armas e os barões pode ser considerado um romance de formação, apesar de se ater a apenas alguns anos da vida do personagem principal, Cláudio Crasso (ou Cláudio C.). Ambientado em cidades européias (não se sabe em qual delas o protagonista realmente está no momento das ações; mas certamente ele passa por Paris, Atenas, Amsterdã, Londres e Budapeste), o romance alterna narrativas em primeira e terceira pessoas. Cláudio C. é um jovem sem rumo que vaga desorientado pela Europa. No início, ele está só: absoluta e terrivelmente só. É quase um mendigo em terra estrangeira. Já não sabe o que é um banho ou uma refeição completa. Ele pensa em fingir-se doente, para ser internado e passar alguns dias num hospital. Ao menos teria uma cama (fora expulso da pensão onde morava, por falta de pagamento) e poderia se alimentar (já não tinha dinheiro nem para comer). Mas a interpretação de doente não é necessária: Cláudio realmente adoece e, debilitado, é internado num hospital. Depois da tempestade, a bonança. A alta veio mais de um mês depois. Junto com ela, um emprego, indicação da freira/enfermeira que cuidava dele. A partir daí, a vida de Cláudio melhora um pouco: ao menos já pode se manter, mudar de cidade, comer, se vestir, ter um teto, mesmo que alugado ou de favor, no estúdio de uma nova amiga, pintora. Depois dessa temporada na Europa, Cláudio retorna ao Brasil. O último capítulo do livro revela um homem perdido, sem perspectiva alguma de futuro. Ele não é mais o mesmo. Seu país não é mais o mesmo. Sua mente não é mais a mesma, seus pensamentos são delírios. É o fim do livro e, talvez, o fim de Cláudio. Os amores, questionamentos e medos do protagonista são relatados no livro por um narrador que pode muito bem ser Cláudio "falando" em terceira pessoa e também pelo próprio Cláudio, através de seus pensamentos e cartas que escreve a amigos - muito provavelmente imaginários. Mas Flávio Moreira da Costa não alterna essas narrativas entre um capítulo e outro. Às vezes algumas frases ou trechos mais longos em primeira pessoa se seguem a frases na terceira pessoa, numa mesma página. O autor utiliza também muitas reticências dentro do texto (não reticências assim: ...; mas reticências assim: ................................................................................................... ...............................................). Flávio mistura fluxos de consciência à quebra de padrões estruturais. Pequenas notas informando acontecimentos importantes ao redor do mundo começam a ser usadas perto do fim do livro. A idéia talvez seja mostrar ao leitor que não apenas Cláudio está perdido, em conflito, mas sim praticamente todo o planeta. Poderia, então, As armas e os barões ser classificado como um romance político ou de protesto? Sim e não. O romance foi escrito sob a sombra da ditadura, mas não há nele nenhum posicionamento político. Apolítico certamente não é, mas político ou de protesto, também não. Com a palavra, o próprio autor, que via e-mail respondeu a seguinte pergunta: "O romance foi escrito sob a sombra da ditadura e dos movimentos sociais que ocorreram no fim da década de 1960. Uma época bem diferente da que vivemos hoje, como bem sabemos. Mas, se um autor brasileiro quisesse escrever um romance 'politizado', digamos assim, nos nossos dias, ele conseguiria? Há sobre o que escrever? Você escreveria? Se sim, como pensaria esse romance?" A resposta: "Se tivesse escrito 'As armas e os barões' como um reflexo direto da realidade da época, isto é, sobre o exílio político e não sobre o exílio existencial, o livro não teria sido reeditado décadas depois, pois seria datado e limitado ao fato. Qualquer um pode escrever um romance 'politizado', mas o risco de ser um mau romance é enorme. Lembro de Stendhal: 'misturar política num romance é como dar um tiro de chanhão no meio de uma orquestra sinfônica'. Se há sobre o que escrever? Sempre há. Se eu escreveria? Não." É interessante ver que, mesmo escrito entre 1966 e 1967, certos comentários de Cláudio Crasso sobre o Brasil permanecem intactos: "é um país de uma estranha e irônica dialética: as coisas nunca são ou não são, elas são e não são ao mesmo tempo; quando alguém tem uma opinião, ele é a favor, mas... ou então ele é contra, mas... os políticos são artistas: o que seria deles se não existissem os 'mas', os 'poréns', os 'todavias'?" E certas discussões parecem não ter fim, como quando ele fala que em alguma cidade européia "parece que o governo dá uma ajuda aos artistas, mesmo aos escritores, uma mensalidade por mês e a única exigência ― o livro pronto ― é que seja publicado numa das editoras daqui; é uma boa solução para quem deseja se dedicar à sua vocação: as pessoas ficam livres para criar, embora muita mediocridade possa viver à sombra disso, mas não esqueça que os medíocres também fazem parte da paisagem, eles também precisam se justificar". Talvez "engajado" seja a palavra que mais se aproxima da realidade, mesmo não sendo o termo correto. Mas Flávio prefere não classificar o romance, e afirma que "talvez o melhor do livro seja sua liberdade criativa, atento apenas à linguagem e à estrutura." Para que perder tempo com classificações, aliás? O livro foi escrito e publicado para ser lido. Ainda mais um romance como As armas e os barões, obra de inquestionável qualidade e importância. Classificá-lo é um trabalho para burocratas, e não para leitores. Para ir além Rafael Rodrigues |
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