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Segunda-feira, 11/8/2008
O centenário do Castor
Pilar Fazito

On ne naît pas femme, on le devient

Na década de 1960, minha mãe cursava o ensino médio do Estadual Central em Belo Horizonte e, em meio a toda a agitação da época, mudou de nome. Abandonou o romântico "Senhorinha" com que foi batizada e adotou "Simone", influenciada, em parte, pelas leituras da obra de Simone de Beauvoir.

Desde pequena eu ouvia essa história e tinha cá para mim que Simone de Beauvoir era uma filósofa francesa que escrevia sobre casamento, divórcio, mulher e outros assuntos que, até então, não me despertavam o menor interesse. Minha relação com Simone de Beauvoir era assim: ela na estante e eu lá fora, descendo a rua no carrinho de rolimã. Até que tentei ler alguma coisa aos catorze anos, mas não passei da primeira página. Enfadonho. Chato. Foram as primeiras ― e tolas ― impressões sobre o que viria a ser um marco na minha vida anos mais tarde.

Até pouco tempo achava muito sacal discutir "a condição feminina". Talvez porque não parava para prestar atenção àquilo que me torna parte deste universo tão pouco compreendido. O fato é que a leitura de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, representou uma sacudida na minha essência, ou como disse Mia Couto em relação a sua primeira leitura de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, um terremoto.

Escrito há quase 60 anos, O segundo sexo ainda é um livro muito atual e bem que merecia uma edição comemorativa neste centenário de nascimento da autora. Dividido em dois volumes, o primeiro é mais teórico e trata dos mitos e de toda uma simbologia em torno do elemento feminino.

Já o segundo volume deveria ser livro de cabeceira de muita gente: tanto de mulheres quanto de homens que reclamam que não as entendem. Dividido em várias partes, é mais didático ao analisar a trajetória da mulher desde a infância até a maturidade. Ali estão descritas todas as angústias e a dubiedade próprias ao universo feminino e que estão fundamentadas na criação diferenciada que as mulheres recebem e na constituição física e biológica que as moldam.

Simone de Beauvoir analisa como ninguém o modelo tradicional de educação que incentiva os meninos a se aventurarem, serem ousados e brigarem, enquanto delega às meninas o recato, a passividade e a exigência da beleza. Por meio dessa análise, homens e mulheres passam a entender melhor o estrago social que perpetuamos por aí e os clichês que acabam tendo algum fundamento, como a idéia de que mulher inteligente afugenta os homens ou que é preciso fingir-se de burra para que o homem não se sinta inútil.

Nascida a 9 de janeiro de 1908, em Paris, Simone de Beauvoir fazia parte de uma família de aristocratas decadentes que, mesmo à beira da falência, assegurou que ela tivesse uma educação elitista, com incentivo à literatura e estímulo à escrita. O pai a considerava um fracasso por ser pobre, feia e sem condições de arrumar um marido e, talvez já intuindo que a chave para a sua independência estava no conhecimento, Beauvoir se tornou uma aluna dedicada e voraz. Anos mais tarde, acabou recebendo o apelido de "Castor", do amigo René Maheu, por causa da similaridade entre as palavras Beauvoir e beaver ("castor", em inglês) e pelo reconhecimento de seu espírito construtor.

Por mais de 50 anos ela e Jean Paul-Sartre mantiveram uma relação maior do que uma simples amizade. O pacto estabelecido logo no início soava como uma aberração para a década de 1920: uma espécie de amizade colorida. Não haveria casamento, nem co-habitação. Os dois se amariam sempre que quisessem, mas cada um era livre para se envolver com outras pessoas. No caso de Simone de Beauvoir, inclusive outras mulheres.

O casal conseguiu manter esse pacto razoavelmente bem, se pensarmos nas dificuldades de administrar os sentimentos individuais numa situação como essa. Mas, vez por outra, era possível observar na vida da autora uma luta interna para domar o ciúme em relação a Sartre. Incentivada por ele, ela estudou esse tipo de sentimento a fundo e acabou descrevendo-o como uma estratégia de sobrevivência feminina diante das regras sociais a que a mulher era (e ainda é) subjugada. Foi essa determinação que originou a publicação de O segundo sexo em 1949 (!), logo após a Segunda Guerra Mundial e bem antes da liberação sexual que marcou a juventude ocidental da década de 1960.

No primeiro capítulo, Simone de Beauvoir joga por terra a teoria freudiana da "castração", segundo a qual a mulher seria um "homem mutilado" que passaria a vida invejando o pênis e todo o seu simbolismo: poder, superioridade etc. Para Beauvoir, até certa idade, meninos e meninas agem do mesmo modo, mesmo porque não têm consciência do que implica, em termos sociais, ter nascido com, ou sem, uma carne a mais entre as pernas. Apenas quando surge a pressão externa, quando os separam em dois grupos, impondo-lhes roupas, cores, brinquedos e atividades distintas é que começam a captar que já nasceram com um destino traçado. Se há inveja por parte das meninas e das mulheres em relação ao sexo masculino isso não se deve ao fato de serem elas um "projeto mal sucedido de homem", mas porque não tiveram as mesmas oportunidades, nem o incentivo para se lançarem em busca de seus sonhos e desejos.

De fato, parece que ao menino é dada a permissão para se divertir e também quebrar a cara. Ele aprende a brigar e a tentar vencer na vida. A menina, geralmente, é educada como incapaz e a oportunidade de se arriscar, freqüentemente, lhe é negada. E é assim, dependente do pai, que é entregue na igreja a um marido e vira dependente de outro homem. Em algumas sociedades, a incapacidade é prolongada quando a mulher passa a depender de um filho.

Sessenta anos após a primeira publicação desta "bíblia do feminismo" (termo que se tornou injustamente pejorativo), ainda não saímos do "período de transição" sinalizado à época por Beauvoir. A sociedade continua não entendendo como as mulheres "funcionam" e isso é péssimo tanto para a garantia dos direitos femininos quanto para a harmonia das relações conjugais e familiares.

Quando falo do desconhecimento da máquina feminina, não me refiro apenas aos estudos científicos ― que só depois de criar o Viagra para aplacar a impotência masculina têm começado a contemplar o universo venusiano.


Certa vez, um amigo me perguntou se nós mulheres não conseguíamos segurar a menstruação. Fiquei estupefata com a pergunta e um tanto incrédula. Mas lembrei que eu mesma levei mais de uma década para conseguir identificar minhas próprias TPMs, aceitar que elas realmente existem, memorizar datas cíclicas e decorar a ordem de todos os sintomas que me afligem ao longo de 15 dias por mês. Como querer que um homem entenda que faríamos qualquer coisa para evitar tanto aborrecimento, dor de cabeça (literalmente) e todo esse estorvo mensal, caso tivéssemos o controle sobre o nosso próprio corpo?

É aí que começam as diferenças entre homens e mulheres, segundo Simone de Beauvoir: o controle do próprio corpo e do próprio destino. A menstruação e o estupro mostram como as mulheres não têm controle sequer de si mesmas. E antes da invenção da pílula anticoncepcional, também não tínhamos o controle sobre a procriação.

Com essa condição biológica, a sociedade ensina às mulheres que o mais "certo", ou seguro, é casar e ter filhos. Enfim, arrumar um homem e uma família que a proteja. Embora cada vez mais elas priorizem a vida profissional, deixando para criar uma família depois dos trinta anos, ainda ouvem por todos os lados a cobrança de "sossegar" e cumprir logo seu papel de esposa e mãe.

Há algum tempo, uma aluna, que deveria ter uns 20 anos na época, me disse que não poderia se imaginar aos 29 solteira e sem filhos. Isso seria "uma tragédia". Espero que ela tenha lido Simone de Beauvoir de lá para cá, ou então vai mesmo acabar se jogando sobre a linha de um trem.

Mulheres que se rendem às vozes da sociedade e não se dedicam a nenhuma outra ocupação, seja ela profissional ou não, vivem confinadas no ambiente doméstico, com pouco espaço de manobra. Seu universo se resume a tarefas do lar, cuidados com a beleza e comentários sobre a vida alheia, sobretudo em relação ao tema familiar, casos amorosos, celebridades e toda a pauta das revistas de fofoca.

Na infância, essas mulheres aprendem a agradar a todos para serem aceitas. Na adolescência, suspiram pelo príncipe encantado até que a ficha cai logo na primeira transa: o príncipe encantado é propaganda enganosa, porque se tivessem dito como a primeira vez é animalesca e dolorosa, ela fugiria com ou sem sapatinho de cristal. No casamento, a mulher tem outra decepção e descobre que a casa paterna não era tão ruim quanto imaginava em vista da nova realidade. Mas aí já é tarde e ela tem que agüentar. Então, ela pensa que tudo tem um preço e, ao menos, ela tem um marido. Por pior que ele seja, não está sozinha, encalhada.

Para Simone de Beauvoir, o caminho da libertação feminina é a independência. Não à toa, as mulheres que cita com maior admiração são as artistas e as prostitutas. As primeiras por seguirem seus sonhos independentemente do preconceito a que se submeteram ao longo dos anos (haja vista a freqüência com que as atrizes eram confundidas com prostitutas). As segundas por denunciarem a hipocrisia social ao assumir como profissão aquilo que as esposas aceitavam como o destino feminino. Em outros termos, se não resta à mulher alternativa ao papel de objeto sexual masculino, cobrar por isso e garantir a própria sobrevivência não deixa de ser uma atitude independente.

No Brasil e em muitos outros países, a mulher tem conseguido garantir sua independência financeira e até manter os gastos de filhos, pais e maridos. Mas independência financeira não é o mesmo que independência emocional, algo a que nem Simone de Beauvoir nem Jean-Paul Sartre estavam imunes, diga-se.

Inspiradas em Beauvoir, muitas feministas pregaram uma igualdade de sexos que ela mesma sabia não existir. Para a filósofa, o necessário seria haver uma igualdade de oportunidades e um respeito pela diferença da mulher. Não é uma questão de ser hierarquicamente superior ou inferior ao homem; Beauvoir sabia que o feminino e o masculino são diferentes e não há como medir o valor de cada um.

Se Beauvoir pintava as unhas ou trazia o cachimbo de Jean-Paul Sartre para ele, isso não implica necessariamente uma submissão à maléfica estrutura machista, mas talvez amor por si mesma e pelo outro. Cuidar de si, cultivar a própria feminilidade e o amor ao outro não é nocivo quando reservamos espaço para o nosso crescimento profissional, intelectual e para a realização de nossas aspirações. Sob esse aspecto, ninguém pode negar a realização pessoal de Simone de Beauvoir ao longo dos seus cem anos de independência feminina.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 11/8/2008

 

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