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Sexta-feira, 29/8/2008 A juventude nas livrarias Luis Eduardo Matta Eu tinha dez anos de idade quando passei a ler livros com regularidade. Por livros, entenda-se, literatura de ficção. Lembro-me bem da época, porque foi a mesma em que iniciei uma coleção de selos postais, atividade apaixonante que levei a cabo por mais de meia década. Corria o ano de 1985 e meu pai, num gesto de comovente generosidade, resolveu abrir contas para mim numa livraria e numa casa filatélica, ambas situadas no mesmo quarteirão, em Copacabana, e eu as visitava semanalmente, muitas vezes até sendo obrigado a cancelar outros compromissos como partidas de futebol nos playgrounds de edifícios de amigos ou na praia (sim, eu joguei futebol de praia quando criança, por mais alarmante que essa revelação possa soar para algumas pessoas que me conhecem), idas ao cinema ou passeios com a família, já que eu era capaz de perder horas em meio aos livros ou aos selos, escolhendo quais iria levar naquele dia e conversando com os livreiros e, sobretudo, com a simpática dona da filatélica, que se chamava Meire. Dez anos foi, para mim, uma idade difícil. Talvez a única realmente difícil até o presente momento, pois marcou a minha passagem da infância para um precoce universo adolescente que, a princípio, me pareceu ameaçador e inóspito. Eu não estava ainda preparado para os novos dilemas e paradigmas de comportamento que se impunham, e tanto os selos quanto, sobretudo, os livros, foram de grande serventia, não apenas para me divertir e mostrar perspectivas novas de uma maneira mais civilizada e menos turbulenta, como, principalmente, para me dar um banho de maturidade e me ajudar, assim, a ingressar com mais segurança e discernimento nesse perturbador e intenso período da vida que é a adolescência, um intervalo de poucos anos que nos arranca, de repente, do aconchego da infância para nos arremessar para a idade adulta sem, muitas vezes, nos dar tempo de perceber com clareza o que está se passando à nossa volta e de prestar atenção aos protestos da nossa emoção e dos nossos anseios. A leitura me abriu portas e me concedeu ganhos imensuráveis. O maior deles talvez tenha sido a capacidade de compreender o outro. É claro que a literatura não operou sozinha nesse sentido, mas seu papel foi decisivo. Hoje, ainda que não concorde com a opinião de uma pessoa, aceito que ela a emita, levo-a em consideração e, mais do que isso, busco, por meio de uma reflexão, divisar os caminhos que a fizeram pensar daquela maneira e, quando dou por mim, percebo que aquele conflito de pontos de vista não tem maior relevância. Outra conquista advinda dos livros foi o humor, a capacidade de rir das coisas e, sobretudo, de mim mesmo. Muita gente não acredita, mas a verdade é que eu não me levo muito a sério. Como escritor, por exemplo, embora goste dos meus livros, não acho que eles tenham um papel revolucionário na literatura, ou, tampouco, me vejo como uma figura genial e indispensável para o destino da cultura nacional. Se eu morrer amanhã, provavelmente algumas pessoas mais próximas, como familiares e amigos, sentirão a minha falta, mas o mundo seguirá no mesmo ritmo. Se os meus livros e meus artigos deixarem de ser lidos, isso não fará grande diferença e não implicará numa mudança na sociedade. Tenho plena consciência disso. E, mesmo assim ― ou seria por causa disso? ― continuo escrevendo. Porque me diverte, porque me faz bem, porque me dá a oportunidade de criar mundos paralelos, de viver outras vidas, de imergir no onírico universo da criação... A minha vida adulta não seria tão prazerosa e agradável, caso a literatura ― como leitor e como escritor ― não fizesse parte dela. É claro que isso teve um preço e, em 1985, um menino de dez anos afirmar, sem constrangimento, que uma de suas atividades de lazer preferidas era ler, mais do que estranheza generalizada, causava verdadeira indignação e, em alguns casos, revolta. Isso, de certo modo, é compreensível se constatarmos que, naquela época, os livros eram muito mais distantes da vida dos jovens do que são hoje. A livraria que eu freqüentava, e que possuía um dos melhores espaços destinados à literatura infanto-juvenil do meu bairro, não possuía nenhum charme e se resumia a um conjunto de estantes e expositores abarrotados de livros empoeirados. O ambiente era espartano, sisudo, sem graça e a impressão era a de que se estava entrando no depósito organizado de alguma editora. Nada ali dentro convidava um adolescente de uma época na qual já existiam videogames, videocassetes, praças de alimentação de shoppings centers e matinês de danceterias, a entrar e ficar. Os livros juvenis se misturavam aos didáticos nas prateleiras e passavam uma impressão incômoda de leitura obrigatória em carteira escolar. As livrarias, definitivamente, não eram lugares para adolescentes antenados com as demandas da sedutora modernidade dos anos 80. Havia, além disso, uma carência de eventos que tivessem o livro como centro e o fizessem descer, pelo menos por alguns dias, do seu pedestal, e circular no meio do povo. A Bienal do Livro no Rio de Janeiro ― hoje, um mega-evento concorridíssimo ― ainda dava seus tímidos primeiros passos. As oportunidades de, por exemplo, os leitores encontrarem seus escritores favoritos eram escassas e, quando surgiam, chegavam a causar alvoroço, como ocorreu numa visita que Sidney Sheldon fez ao Rio naquela época. Não me recordo o ano exato, mas me lembro nitidamente de estar andando pela avenida Copacabana e notar uma aglomeração junto à entrada do edifício onde funcionava a biblioteca do bairro. Era tanta gente, que uma fila se formara, chegando a dobrar a esquina com a rua Santa Clara. Todos queriam ver Sidney Sheldon que, naquele momento, dava uma palestra ou algo do tipo, no auditório da biblioteca. Anos mais tarde, uma amiga, que trabalhava lá na ocasião, me confirmou a história e relatou seus pormenores. É provável que a cena se repetisse nos dias atuais, embora sem a mesma intensidade e, ainda mais, num auditório de biblioteca. Não porque as pessoas estejam lendo menos, ao contrário. Mas porque os eventos literários se multiplicaram de tal maneira e tornaram-se tão atraentes, festivos e dinâmicos, que esbarrar com um escritor consagrado, mesmo estrangeiro, tornou-se algo muito mais corriqueiro. A literatura está mais presente no calendário anual do país e, aos poucos, vai sendo aliviada do excesso de sisudez e de pompa com o qual foi cercada ao longo de décadas. Hoje, boa parte das livrarias brasileiras ― como as da Travessa e Argumento, no Rio, e Cultura e da Vila, em São Paulo, sem falar nas redes Leitura, Saraiva, FNAC, entre outras ― refletem essa situação. Elas mudaram bastante nos últimos tempos e, além de funcionarem como locais de venda, se converteram em pontos de encontro, de troca de idéias e, em alguns casos, verdadeiros centros culturais. A multiplicidade dos títulos expostos, o colorido das capas, o ambiente acolhedor, tudo convida a uma visita prolongada. Contribuiu para isso, a bem da verdade, um sensível aprimoramento no projeto gráfico dos livros, que estão mais vistosos e melhor diagramados e impressos, processo deflagrado pela Companhia das Letras ainda no final dos anos 80 e, sabiamente, seguido pelas demais nos anos subseqüentes. A oferta de títulos também se expandiu, oferecendo mais alternativas ao leitor e dando força à teoria de que todo leitor interessado encontrará um livro interessante. Isso é particularmente verdade na literatura infanto-juvenil e é nesse segmento que as mudanças são ainda mais perceptíveis. Nunca foram publicados, no Brasil, tantos títulos direcionados a esse público, com tamanha variedade de temas e gêneros e em total sintonia com a realidade do adolescente contemporâneo. As sessões de livros infantis e juvenis das livrarias que freqüento são espaços agradáveis, tão ou mais sedutores do que muitas ante-salas de badalados cinemas multiplex, com títulos para todos os gostos e para onde vejo os jovens leitores se dirigirem espontaneamente e com genuíno interesse, algo impensável em 1985. Eles não só lêem os livros, como, depois, usam fóruns, comunidades e blogs na internet para discuti-los, quando não o fazem pessoalmente. Sinal dos tempos? Talvez. O certo é que, por tudo o que tenho observado, os adolescentes de hoje me parecem mais inteligentes, dinâmicos, informados e exigentes do que eram os da minha geração e tendem a se tornar ávidos apreciadores de toda sorte de manifestações culturais, desde que sejam adequadamente estimulados, o que nem sempre acontece. E o fato de o mercado editorial estar dirigindo uma atenção especial a eles é uma confirmação desta nova realidade. Os céticos ranzinzas, obviamente, irão sempre argumentar que as causas desse boom infanto-juvenil são as leituras curriculares nas escolas, esquecendo-se de que isso já existia em abundância na década de 1980. O que está acontecendo hoje é o começo (vejam bem: o começo) de um despertar de consciência da sociedade brasileira para a necessidade do conhecimento, da urgência do livro na vida das pessoas, independente de idade, condição social ou lugar onde vive. Sempre gostei de afirmar que livro é coisa para adolescente, que livro é coisa para o povão, que livros podem e devem fazer parte do cotidiano de todo mundo, sem exceção. Por que não? Já está mais do que na hora de aniquilarmos essa noção histórica equivocada de que os livros são objetos sacrossantos exclusivamente destinados ao deleite de uma parcela intelectualmente e socialmente mais privilegiada, e de que apenas determinadas obras, eleitas arbitrariamente por pessoas que se dizem elite, têm valor como leitura. A literatura precisa ser tratada com mais naturalidade, sem tantos cerimoniais e rapapés e, se as pessoas ― a garotada, sobretudo ―, irão ler Machado de Assis ou a série Harry Potter, a escolha compete a elas, e quem somos nós para interferir? Uma das coisas que sempre observo nas minhas visitas semanais às livrarias é o entusiasmo dos jovens diante dos livros à venda e a liberdade com a qual eles escolhem os que irão levar para casa. Muitos nem de longe se enquadram no surrado estereótipo do nerd ensimesmado e anti-social e podem, muito bem, ser encontrados em festinhas e corredores de shoppings. Para uma boa parte deles a literatura perdeu aquele repelente e antipático ar de austeridade e virou uma fonte de lazer e entretenimento e, por tabela, um meio de interação social e, é claro, de formação cultural. Muitos adolescentes não só vêm criando o hábito de freqüentar livrarias, como estão se conhecendo e estabelecendo contatos graças às afinidades de leitura e esse é, a meu juízo, um processo que irá se expandir nos próximos anos. A literatura, enfim, parece começar a encontrar caminhos para chegar aos corações do povo. Um fato inédito no Brasil e que, lenta e sorrateiramente, está mudando a realidade da leitura entre nós. Não duvido que, em alguns anos, veremos concretizado o sonho de Monteiro Lobato, autor da célebre frase de que um país se faz com homens e livros. E eu incluiria nela as mulheres, já que está comprovado que elas têm sido mais aplicadas do que os homens quando o assunto é leitura. Luis Eduardo Matta |
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