|
Sexta-feira, 12/9/2008 A evolução da nova democracia brasileira Luis Eduardo Matta Há vinte e seis anos, na reta final do regime militar e ao cabo de quase duas décadas de anseios pela redemocratização, o Brasil, enfim, ia às urnas nas primeiras eleições diretas pluripartidárias desde 1965. Seriam escolhidos os governadores dos estados, senadores, deputados federais e estaduais e, em muitas cidades, prefeitos e vereadores. Corria o ano de 1982 e a euforia na sociedade era generalizada. Pairava uma esperança coletiva e um tanto romântica de que, com o retorno do país à democracia, todos os problemas seriam solucionados. Teria início um período de liberdades, progresso, justiça social, moralidade e controle da Economia. Era a Nova República que se anunciava. O Brasil encontrava-se em contagem regressiva para a grande mudança. Embora eu tivesse apenas 7 anos de idade, lembro-me perfeitamente daquela época. No Rio, cinco candidatos concorreriam ao governo do Estado, nascido da polêmica fusão de 1975: Leonel Brizola, pelo PDT, que acabou vitorioso; Moreira Franco, pelo PDS (herdeiro da antiga ARENA ― Aliança Renovadora Nacional, partido de sustentação do regime militar); Sandra Cavalcanti, pelo PTB (uma ironia uma vez que Sandra, um dos ícones do lacerdismo, concorria pela legenda consagrada por Getúlio Vargas, adversário histórico de Carlos Lacerda); Miro Teixeira, pelo PMDB (que congregava os membros do antigo MDB ― Movimento Democrático Brasileiro, de oposição à ARENA) e Lysâneas Maciel, pelo PT. No dia 15 de novembro de 1982, acordei cedo, fui até a varanda e olhei para a rua lá embaixo, forrada de panfletos de propaganda partidária. Eram tantos os papéis, que mal se via os mosaicos de pedras portuguesas das calçadas de Copacabana. Carreatas ruidosas, com extravagantes bandeiras e cartazes dos candidatos congestionavam as ruas. Nas esquinas, correligionários adversários se enfrentavam em brigas quase cinematográficas. As pessoas comemoravam em toda parte, confraternizavam, cantavam os jingles de seus partidos, desfilavam orgulhosas vestindo camisas e bonés com as imagens dos candidatos ou das legendas, assediavam ostensivamente e, por vezes, de forma agressiva os eleitores que ainda não tinham votado. Parecia sábado de carnaval. Durante toda a década de 80, até a eleição presidencial de 1989, passando pela campanha das "Diretas Já", foi assim. Dia de eleição, pelo menos no Rio de Janeiro, era dia de festa. Com o passar dos anos, a realidade política brasileira, que não conhece ideologia, agremiação partidária ou sistema de governo, se impôs e o entusiasmo dos anos de abertura foi arrefecendo até chegarmos aos agonizantes dias atuais. Hoje, campanha eleitoral é motivo de chacota, o desalento e a revolta dão o tom da maior parte das conversas sobre política, as pessoas vão votar contrafeitas, achando uma arbitrariedade "fascista" serem obrigadas legalmente a comparecer a uma seção eleitoral, como se fazer isso uma ou duas vezes a cada dois anos fosse um grande sacrifício, e esquecendo-se de que, numa democracia, as pessoas têm não apenas direitos, mas também deveres. Desde meados dos anos 90, quando saio para votar, o que vejo nas ruas são raros e minguados grupos fazendo desanimadas panfletagens. A lei eleitoral, mais rígida do que em 1982, pune (acertadamente, aliás) a propaganda que emporcalha as calçadas e a paisagem urbana. As pedras portuguesas de Copacabana não são mais inundadas por panfletos. Não há mais carreatas, nem brigas nas esquinas. O clima é de um dia normal de descanso. A tranqüilidade impera. Pessoas mais politizadas de todas as ideologias, sobretudo as que viveram a efervescência das décadas de 1960 a 1980, constituem uma minoria que lamenta e se ressente dessa situação. Cobram mais engajamento da população. Clamam por mais interesse pelas questões políticas. Algumas insistem em apregoar discursos ideológicos fossilizados, como se ainda vivêssemos nos anos de bipolaridade da Guerra Fria e da dicotomia entre capital e trabalho ou entre os valores da família e a "ameaça vermelha". Mas como despertar entusiasmo pela política no Brasil, se a nossa imprensa vive entupida de escândalos e onde todos os problemas continuam esperando solução? Como querer que a população reviva a esperança da época da redemocratização se continuamos a pagar impostos de padrões escandinavos para recebermos em troca serviços públicos de país em guerra? Como exigir qualquer coisa quando o assunto é política, se o horário eleitoral gratuito é um circo dos horrores, quando não acaba funcionando como o mais cômico programa de humor na televisão, com os mesmos discursos de sempre se repetindo? (Sou o(a) candidato(a) fulano(a) de tal. Você me conhece! Meu objetivo é educação, saúde, segurança, emprego, transporte, moradia, e assistência para a criança e para o idoso. Vou batalhar pelo fim da taxa referente ao dilúvio do Velho Testamento, pois o nosso povo não pode continuar sofrendo com as perdas do Plano Noé. Lutei pela colocação da rebimboca da parafuseta na comunidade XYZ e adjacências. Fiz e farei muito mais. Conto com o seu voto para, juntos (sic!), continuarmos esse trabalho.) É claro que o fato de vivermos numa democracia, ainda que não seja a dos nossos sonhos, já é um progresso, pois regimes de exceção ― sejam eles capitalistas ou socialistas, laicos ou religiosos ― já se provaram um retrocesso em todo o mundo e, além de reprimirem a liberdade e instaurarem um clima de violência e medo, semeiam uma discórdia política que só serve para retardar o debate sobre o que é realmente necessário para a redenção e o progresso da sociedade. O fato de podermos votar, ainda que obrigados, é uma conquista que não deve ser menosprezada, apesar de toda a bandalheira escancarada e desavergonhada dessa política verde-amarela praticada com "p" minúsculo. De todo modo, a apatia do eleitor atual não é surpreendente. O Brasil é uma democracia antiga para os padrões ocidentais. Foi uma das primeiras nações modernas a ter parlamento, já em 1823 ― quando se reuniu a primeira Assembléia Constituinte ― e durante o período monárquico contou com eleições e liberdade de imprensa ― dentro, é lógico, do que permitiam os padrões do século XIX. No entanto, esse ciclo democrático iniciado no período entre a Anistia, em 1979, e as eleições de 1989, é recente. Muito recente. E o povo (ou seja: nós) ainda está se habituando a ele. O ceticismo atual é uma ressaca da cegueira gerada pela euforia ingênua dos 80. A podridão na política sempre existiu e já existia naquele tempo e antes dele. Apenas saiu do armário, tornou-se visível a quem tiver olhos para ver. As pessoas, simplesmente, foram trazidas para o amargo chão da realidade. Para mim, como brasileiro atento, isso é extremamente positivo. É um sintoma de amadurecimento. De que estamos progredindo enquanto democracia. Que o Brasil está caminhando para frente. Que as pessoas tornaram-se mais pragmáticas, mais exigentes com relação à política. Elas não se deixam mais enganar tão facilmente. Não, ao menos, aquelas que têm acesso à informação e capacidade para interpretá-la. Podem até votar num candidato notoriamente corrupto e infame. Mas o fazem conscientemente, certas de que, a despeito da sua falta de ética e da sua pouca cerimônia com o erário, ele fará alguma coisa concreta que beneficiará certa parcela da sociedade. Se, acaso ele não cumprir a promessa, o eleitor o abandona. Essa objetividade e certa frieza no ato de votar e de julgar de maneira implacável o desempenho de um governante ou parlamentar é, a meu juízo, imprescindível para o saudável jogo democrático. Além disso, a sociedade está mais organizada e consciente, vide as associações de moradores e os movimentos em defesa das mulheres, dos negros, dos deficientes, dos homossexuais etc., que, hoje, têm uma atuação infinitamente mais ativa do que vinte e cinco anos atrás. O eleitor apaixonado e meio insano do passado está dando lugar a um eleitor de perfil mais técnico. O que falta para que esse amadurecimento seja completo é aquilo que todos já estamos fartos de saber: uma população mais instruída, com franco acesso à cultura e ao conhecimento e a capacidade de dialogar com ele. Um povo cuja familiaridade com a palavra escrita lhe permita acompanhar os jornais diariamente e formar sua própria opinião, sem permitir que sua cabeça se transforme numa mera caixa de ressonância de discursos viciados. Um povo que consiga ler a Constituição e os códigos de leis que expõem os seus direitos e obrigações. Sem uma educação universal e de excelência e uma valorização da cultura como item indispensável na cesta básica de todo brasileiro, a imoralidade continuará a vicejar com vigor pelos campos da política nacional. Mas enquanto a grande virada não acontece, o povo evolui e, aos poucos, vai fazendo sua revolução silenciosa e assumindo uma postura mais ativa na defesa dos seus interesses e os da coletividade. Luis Eduardo Matta |
|
|