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Segunda-feira, 8/9/2008 Letras Pilar Fazito Curso Brastemp, diploma Walita Lá pelos idos de 1992, quando eu ainda era apenas uma adolescente alienada, sósia da Janis Joplin, entupida de espinhas no rosto e a prova viva de que a Lei de Murphy sabe para quem aparece, me vi com um manual de vestibular nas mãos e com aquela terrível dúvida que nos atormenta ao menos uma vez na vida: que diabos eu vou ser? Li o guia de profissões de cabo a rabo (ou de cabo à raso, se preferem) e de cara consegui eliminar a maioria das opções. Não daria outra: Comunicação Social ou Letras. Como eu ainda estava no 2º ano do Ensino Médio, resolvi prestar meu primeiro vestibular de mentirinha para Biblioteconomia, após deixar o dedo guiar-se pelo número de candidatos por vaga. Eu nem sabia direito o que um bibliotecônomo faz; a idéia era simples: garantir que passaria para a segunda etapa do vestibular para ver como eram as questões abertas, que também eram cobradas nas provas de Comunicação Social. E eu passei. Grande feito para uma aluna do meu colégio na época e que ainda nem tinha terminado o 2º ano: passei no vestibular da UFMG. Que interessa que era Biblioteconomia?! UFMG, cara! Derrotei outros 5 candidatos e garanti a vaga pela qual nos estapeávamos, numa universidade federal e aos 16 anos! Grande feito! Grande garota! A fama correu até a sala dos professores do colégio e meu professor de Química chegou radiante em nossa turma, louco para saber quem era nossa brava e dotada estudante que havia passado no vestibular da UFMG. Ele me fez levantar e me deu os parabéns. Então, me perguntou para que curso eu havia feito a prova e eu respondi com um muxoxo: "Biblioteconomia". As primeiras sílabas saíram tropeçando, meio emboladas, e ele ainda orgulhoso perguntou para ter certeza: "Economia?" "Não, fessor, Bi-blio-te-co-no-mi-a", eu respondi, pausadamente e já voltando resignada para o meu lugar. Fez-se o silêncio, ele olhou com aquela cara de decepção e apenas emitiu um "ah" apagado. Terminaram aí os meus 15 minutos de fama e de glória. Ninguém mais tocou no assunto até o ano seguinte, quando me decidi por Letras e meu pai, com a frustração estampada no rosto, tentava me fazer desistir daquele "cursinho Walita" e seguir seus passos na Medicina, ou optar pelo Direito "ou qualquer outra coisa melhor". Aí eu ameacei tentar Biblioteconomia pra valer e ele me deixou fazer Letras. O que houve com a Comunicação Social, muita gente ainda me pergunta. E por tempos, há quem achou que eu tivesse feito Letras por conta do baixo número de candidatos por vaga. Não é bem assim. Também não fiz Letras achando que me formaria escritora e, a bem da verdade, a Literatura sequer me passou pela cabeça quando decidi estudar Letras. Ainda hoje, um dos meus maiores objetos de adoração é a pedra de Rosetta; e na época do vestibular ela só ficava atrás da capa do LP Physical Graffiti, do Led Zeppelin. Para quem não sabe, a pedra de Rosetta é um bloco enorme de granito que contém inscrições em Grego, Egípcio demótico e hieróglifos, datados de mais de 150 anos antes de Cristo. Ela foi encontrada nas escavações promovidas por Napoleão Bonaparte, em 1799, perto de Alexandria, no Egito. A grande importância da pedra de Rosetta foi ter permitido ao lingüista francês Jean-François Champollion a chave para decifrar os hieróglifos egípcios. Champollion percebeu que os hieróglifos não tinham um valor meramente simbólico, mas também fonético. Ou seja, assim como nos ideogramas, o som era ali representado e capaz de produzir um significado muito maior do que apenas "passarinho-cobra-sol-olho". Quando optei por Letras no vestibular, eu pensava era nisso, no Champollion. Tudo bem, eu admito, eu não sabia o nome do cara, nem toda essa história de valor fonético e semântico. O que eu sabia era que achava legal esse lance de escavar, achar cartas e papéis velhos, juntar tudo, como um quebra-cabeça, e tentar receber hoje a mensagem de alguém que escreveu há milênios e havia virado pó. Essa possibilidade real de se comunicar com os mortos e antepassados por meio de pergaminhos e palimpsestos me parecia algo tão aventuresco quanto os filmes do Indiana Jones. Em termos líricos e edificantes, eu pensava na transmissão de conhecimento ao longo dos séculos através da escrita, nessa capacidade que a escrita tem de deixar instruções para que as gerações seguintes não tenham que redescobrir a roda todo dia. E isso me parecia um motivo mais nobre do que o que me vinha à mente quando pensava em fazer Comunicação Social. No curso de Letras eu estudaria como uma idéia vira verbo para, em seguida, virar idéia de novo na cabeça de outra pessoa. Como as palavras podem ser combinadas entre si e como essa disposição afeta as interpretações; por que discursos políticos, esportivos etc. são sempre iguais e ainda assim "colam". Eu queria saber se a dor de amor que temos hoje é a mesma do Machado de Assis, do Platão ou de Domingos Tomacaúna, o mameluco pego pela Inquisição no século XVI, no Brasil. Essas eram algumas das questões que me motivaram a estudar Letras, apesar de toda a má-fama do curso e do senso comum difundido até mesmo entre alunos e diretores de que ele só forma professores e donas-de-casa. Aliás, sempre tive pavor da idéia de virar professora ― dona-de-casa, idem ― e foi depois de formada, ao encarar a realidade dos fatos e o desprezo público pelo diploma de Letras que surtei e fui parar diante de um teste vocacional. Depois de formada num curso que me deu muito conhecimento e satisfação, acabei fazendo outros três vestibulares para tentar "arrumar uma profissão de verdade": um para Direito e dois para Jornalismo. No de Direito eu desisti em cima da hora, feito noiva que foge no altar. Eu tinha medo de não passar e mais ainda de passar, porque então me sentiria obrigada a me formar e passar o resto da vida trabalhando na área. Nos de Jornalismo, eu passei, freqüentei duas semanas de curso ― em cada uma das vezes ―, o suficiente para me perguntar "o que eu tô fazendo aqui?". Em ambas as vezes, tive vontade de sair correndo: o tema me parecia árido demais, real demais, com aquela gente fissurada em notícias de guerra, política e economia, acompanhando e discutindo diariamente as estratégias do submundo das relações de poder. Enquanto meus coleguinhas de primeiro período se sentiam verdadeiros profissionais da mídia, analisando o papel do sindicato na manutenção da reserva de mercado profissional, com aquela adrenalina constante que me dava falta de ar, eu só conseguia pensar no urso polar que devia estar afogando no ártico por causa do degelo. Ainda assim, dificilmente eu faria uma reportagem sobre o aquecimento global. Era mais fácil eu me filiar ao Green Peace, jogar uma bóia para o urso ou então chorar junto dele. Se abandonei o curso de Comunicação Social foi porque a idéia de "venda" que norteia toda a lógica da profissão me parece muito voraz e me assusta: venda na publicidade, venda de imagem pessoal nas Relações Públicas, venda de notícias e de jornal, venda em prol de uma audiência etc. Ainda não consegui proteger o que me resta de idealismo e romantismo para enfrentar um curso desses. O fato é que acabei não cursando Comunicação Social, mas talvez ainda o faça, em vista da exigência do diploma e do registro na Delegacia do Trabalho para muitas atividades que já faço. E esta é minha única objeção ao curso de Letras: a falta espírito empreendedor de diretores de faculdades e dos próprios alunos para transformar uma boa formação intelectual em trabalho prático e economicamente produtivo. Falta identidade profissional e unidade de classe capazes de validar o diploma para o exercício de atividades já regulamentadas, justamente o que os profissionais de Comunicação Social sabem fazer tão bem. É bizarro que haja concursos públicos para Revisores de Texto, por exemplo, que restrinjam a inscrição aos diplomados em Comunicação Social e não permitam que um detentor de diploma de Letras se inscreva. Acreditem, isso existe. A estrutura curricular dos atuais cursos de Letras tem total flexibilidade para incorporar disciplinas, disponibilizar intercâmbios e formações complementares capazes de oferecer habilitações direcionadas a outras atividades que não seja o trivial "dar aulas". Diretores de faculdades de Letras deveriam ter mais iniciativa para se unirem, pleitear alterações nos currículos junto ao MEC e o reconhecimento do diploma para o exercício de outras profissões, fazendo com que o estudante possa optar por outras formações como: redator, revisor, editor de texto, tradutor/intérprete, dramaturgo, roteirista. Na prática, muita gente que se formou em Letras já trabalha nessas áreas. Mas como não há um reconhecimento formal e público da compatibilidade entre o diploma e a profissão, um aval trabalhista que seja, vez por outra o detentor de um diploma como esse ainda encontra dificuldades no mercado de trabalho. Basta ver as exigências dos concursos públicos e a quase inexistência de vagas exclusivas para os detentores do diploma de Letras. É bem verdade que nem diploma nem curso são suficientes para formar um profissional. Mas que ajudam bastante em sua qualificação, ah, isso ajudam. Os diretores e profissionais de Letras bem que poderiam se ajudar mais. Nota da Autora Queria agradecer ao Dimas, leitor atento que manda de lá: o profissional de Biblioteconomia recebe o título de "bibliotecário" e não "bibliotecônomo", como esta incauta letrada neologizou. E como ele bem lembrou (e eu emendei), apesar do desprezo social em relação ao curso dele, Biblioteconomia ao menos garante vaga em concurso público, ao contrário de Letras. Se ninguém sabe o que um bibliotecário faz, pior ainda é a condição de quem se forma em Letras, já que ninguém vê utilidade no que nós fazemos. Em termos de desprezo social pela profissão, quem é o "letrado" para desdenhar de um bibliotecário? Nota do Editor Leia também "A Letras, como ela é?". Pilar Fazito |
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