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Segunda-feira, 8/9/2008
Espírito Olímpico ou de porco?
Verônica Mambrini

Cena 1 ― Vexames nas Olimpíadas de Pequim. Na cerimônia de abertura, a menina de dentes bons dublou a menina com voz boa. Lin Miaoke, a cantora mirim responsável pela interpretação de "Ode to the Motherland", emprestou o rosto para Yang Peiyi, que segundo os organizadores não era "esteticamente adequada" para aparecer na TV. Apesar do desapontamento e inevitáveis piadinhas com a qualidade da produção chinesa, o espetáculo foi faraônico, de proporções enormes e possivelmente o evento mais transmitido e assistido da história. Abre-se a temporada de jogos olímpicos 2008.

Cena 2 ― As Olimpíadas acabam e os canais de tevê aberta brasileiros fazem montagens fantásticas de momentos decisivos, atletas em câmera lenta, trilha sonora emocionante, cores brilhantes. É a primeira Olimpíada transmitida em alta definição. Boa parte da população mundial é miserável, mas quem financia a festa pode se maravilhar com a alta definição ― senão em casa, pelo menos num bar dotado de tevê e do ainda caro conversor digital. Os canais de tevê brasileiros transmitem horas e horas de esporte, especiais sobre o treino dos atletas, canais extras para os jogos. Na imprensa, páginas estouradas com imagens estonteantes dos atletas em ação, assim como lindas galerias na internet. Mas o show termina, enfim. A Globo, no comercial exibido logo depois da cerimônia de encerramento, lembra que a África, como sabiamente disse o Vanucci, "é logo ali", e informa que já está pensando na próxima Copa do Mundo, porque "o show não pode parar".

Cena 3 ― A imprensa se reúne a partir de meio-dia em 26 de agosto para a coletiva de imprensa de Maurren Maggi, recém-chegada ao Brasil. O Brasil trouxe 15 medalhas para casa; ficou em vigésimo terceiro lugar no ranking geral. Maurren trouxe um dos três ouros que o País conseguiu. Dezenas de câmeras estão prontas para filmar, posicionadas no fundo do auditório. As máquinas fotográficas só aparecem depois que Maurren chega ― o vôo atrasa e ela entra em uma sala abarrotada. Esse tipo de coletiva é histérica, ouço uma amiga dizer. A atleta senta e as perguntas são decepcionantes, apesar do clima festivo e ufanista. Alguma coisa no ar, contudo, deixa um travo amargo na boca.

O Comitê Olímpico Brasileiro, responsável por parte desse ufanismo, foi fartamente apedrejado. Os brasileiros ficaram muito insatisfeitos com o desempenho do seu País. A imprensa deu argumentos baseados no aumento de orçamento dos atletas olímpicos para justificar a expectativa de mais medalhas. O aumento de dinheiro disponível veio da Lei Agnelo Piva, que garante o repasse de 2% da arrecadação com as loterias federais para o Comitê Olímpico Brasileiro (85% do total repassado) e Comitê Paraolímpico Brasileiro (os 15% restantes). A lei foi sancionada em 2001 pelo então presidente Fernando Henrique. De acordo com o COB, para o ciclo olímpico de Atenas, R$ 90 milhões foram repassados às Confederações esportivas. Para Pequim, foram R$ 160 milhões, inclusa aí uma parcela direcionada para o Jogos Pan-americanos Rio 2007. Para as próximas olimpíadas, o bolo vai crescer ainda mais, com a entrada em vigor da lei de Incentivos Fiscais ao Esporte.

Parece que a perversa lógica da população brasileira é que as medalhas deveriam aumentar na proporção do investimento. Pouco se acompanha ou se fala dos esportes olímpicos durante esse silencioso intervalo de quatro anos, a falta de infra-estrutura de treinamento mais completa e bem distribuída e a possibilidade de que muitos esportes estejam recebendo recursos insuficientes. Uma das queixas mais comuns dos atletas brasileiros nessas Olimpíadas foi a falta de condições de manter a dieta com suplementos alimentares de primeira linha, por exemplo, o que é um absurdo. Esse é só um entre outras dezenas de fatores que fogem ao conhecimento de leigos, que cobram resultados com a severidade de um patrão que se percebe sendo passado para trás. O treinamento de atletas de elite é diferente de bater um futebol com os amigos no churrasco de sábado; mas, subitamente, como em tempos de Copa do Mundo, brotam técnicos e psicólogos de botequim em cada esquina. Desconfio que parte de tanto mau humor seja conseqüência dos horários pouco felizes em que muitos espectadores viraram notívagos em vão.

Londres já anuncia seu espetáculo. Temos quatro anos para repensar prioridades com os esportes olímpicos; a potência mais promissora do panorama internacional, gentil hospedeira desses jogos, foi também campeã no ranking olímpico, com redondas 100 medalhas. Lembrou-me histórias e notícias sobre a disputa entre os países soviéticos e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. O motor que leva os atletas adiante, aloca recursos corretamente e cobra desempenho com disciplina e convicção parece ainda estar além dos esportes, no campo das relações internacionais. O Brasil parece ter desistido de provar algo a quem quer que seja; continental e arrastado, se deixa levar paquidermicamente no conjunto dos BRICs, beneficiado por condições internacionais extremamente favoráveis e resultados apenas medíocres nos seus índices mais relevantes. Não quero jogar areia no espírito olímpico com meu espírito de porco, mas o que as três primeiras cenas desse texto têm em comum pode continuar puxando o País para baixo, mesmo diante de um enorme potencial. Na sociedade de espetáculo, o ser ficou tão pequeno diante do parecer, que vai ser preciso mesmo muitas telas de alta definição para segurar o interesse do público. A vida de sacrifício, disciplina e renúncia de nossos atletas não está dando conta.

Verônica Mambrini
São Paulo, 8/9/2008

 

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