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Sexta-feira, 4/9/2009
Varinha de condão
Ana Elisa Ribeiro

Ele queria fazer alguma coisa errada, alguma "arte", como dizia minha avó. E eu não deixei. Eu não queria paredes sujas, chão respingado, barulho, sei lá o que era. Televisão ligada à-toa, sapato espalhado pela sala, massinha colorida pregada no tapete, DVDs fora das caixas. Não sei mesmo. Não me lembro das razões da briga, mas me lembro muito bem da ameaça terrível que ele me fez, olhando bem nos meus olhos, com o dedinho em riste no meu rosto e com lágrimas escorrendo pelas bochechas: "Amanhã, quando tiver sol, vou a uma loja". Eu fiz cara de quem espera o resto da ameaça. Ele se manteve firme: "Na loja, vou comprar uma varinha mágica para bater em você e você ficar bonita de novo comigo". É isso. Ele acha que eu fico feia quando brigo com ele. A doçura da ameaça me desarmou. Ele conseguiu, pensei. Não era uma bomba, uma arma de fogo, um fuzil, uma pedra. Era uma varinha mágica, artefato que ele deve ter conhecido em alguma historinha contada na escola. O maior poder do mundo está nas varinhas mágicas. Pena que elas não estão à venda.

Bem que eu queria ter uma varinha mágica também. Talvez eu tocasse com ela em algumas pessoas, em coisas, em dias ruins, em noites mal dormidas, em situações chatas e virasse tudo ao avesso. O avesso das coisas ruins deve ser as coisas boas. Não é isso? E será que uma varinha dessa custa caro? Ele deve saber. A firmeza com que disse que iria a uma loja foi muito grande. E que me dê o endereço da tal mercearia, do armarinho, do supermercado, não sei. Que tipo de loja vende dessas coisas? Será que varinhas têm cores? Ele deve saber.

Com uma varinha, eu poderia ajeitar uns desajustes que eu mesma fiz ou provoquei. Poderia correr um risco muito grande também: querer consertar o que não está estragado. Eu poderia me tornar meio ditadora e querer tocar com a varinha em tudo e em todos. Qualquer briguinha boba e, tum!, varinha nele. O poder de alterar o que me parece ruim se tornaria uma nova ameaça. Então para quê varinha?

Eu preciso explicar para ele, logo, que as varinhas só resolvem uma parte pequena do problema. Melhor é a gente enfrentar a adversidade com soluções mais simples. Não precisa ir à loja, gastar dinheiro, comprar varinha mágica. Precisa saber conversar, negociar, seduzir. Cumprir com os compromissos que tiverem sido feitos. Eu avisei: falou palavrão, não come mais leite condensado. A sanção e as regras do jogo estão claras. Quem transgrediu que se resolva com as punições depois. Quem mandou falar palavrão? Ele diz, com a cara mais bonitinha: "Escapuliu da minha boca", mas não adianta.

E se ele resolver ser um super-herói? Que tipo de superpoder vai querer ter? Aqueles do tipo engenhoso? Cintos de utilidades, robôs superavançados; ou aqueles do tipo "do além", pegar fogo, soprar um vento veloz, enxergar através das coisas e das pessoas. Sorte dele que nasceu homem e pode pensar em superpoderes cheios de possibilidades de intervenção. Quais são os superpoderes das personagens femininas? Pesquise só um pouco. No Quarteto Fantástico, mulher fica é invisível. E deve haver outros assim.

Quando ele me ameaçou com a varinha mágica, eu não dormi mais. Fiquei pensando na dor que aquilo significava para ele. Talvez para mim. Ele ainda não sabe que não pode ter uma varinha daquele tipo. Eu fiquei pensando que a raiva dele era não poder me transformar em algo melhor. Mal sabe ele que essa é a minha frustração também.

Talvez
Queria ir à casa da bisavó. Diz que sim, diz que sim. Os acessos de Chaves são cada vez mais óbvios. Está feliz assistindo ao Picapau, imitando a risada clássica dele. Divertido ver o bom e velho Scooby Doo, inclusive com o suspeito Salsicha. Vez ou outra muda para o Ben 10, que tive de aprender o que era, como agia, que poderes tem. Em todo caso, é um personagem interessante.

Continuava querendo ir à casa da bisavó. Lá tem tios, primos, falação, pão e manteiga. Tem também Coca-Cola e os avós para rever. Tem carrinho e chão sujo da garagem. Tem vozes, muitas delas, contando casos todos ao mesmo tempo. Depois de tanta insistência, do suborno com beijos melados e dos pedidos à moda do Chaves, fui clara: "Talvez". Ele percebeu logo e concluiu, descendo do meu colo: "Talvez é uma coisa que pode não ser". E foi dormir no sofá. Amanhã vou ver se digo a ele que desistir desse jeito é a segunda opção. Há quem diga que talvez é algo que pode ser.

Ana Elisa Ribeiro
São Paulo, 4/9/2009

 

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