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Terça-feira, 16/9/2008
Quem destruiu Anita Malfatti?
Jardel Dias Cavalcanti

Eu desconfio do meu passado.
(Mário de Andrade)

O modernismo brasileiro não passou de um aborto. E Anita Malfatti, a menina prodígio que era a única manifestação real de arte moderna no nosso país, e que estava sendo gerada no útero do provincianismo paulista de início de século XX, foi destruída tão logo colocou suas primeiras asinhas avançadas de fora. Perdemos a única chance de realmente sermos modernistas. O que sobrou foi apenas a arte programática-ideológica-nacionalista, envernizada com um pseudomodernismo de artistas medianos, se não medíocres, como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Portinari.

A exposição de Anita Malfatti, realizada no final de 1917 (ano da Revolução Russa, registre-se de passagem), caiu sobre a cidade de São Paulo como uma bomba. Com cerca de 50 telas "expressionistas", de uma modernidade desconcertante para os padrões artísticos da época, a artista oferecia às nossas paragens o que havia de mais radical em termos de experiência plástica: uma pintura que se pretendia uma experiência da linguagem (da forma e da cor) e não mais uma narrativa mimética do mundo.

A pintura era para ela um problema que se resolvia sob os auspícios da autonomia do artista e da arte, livre de qualquer mediação que não fosse o próprio fato/fazer artístico em si mesmo. Neste sentido, e só neste, pode-se falar em modernidade da arte. Vindo de uma experiência internacional onde conheceu a arte fauve e o expressionismo alemão, além do modernismo nos Estados Unidos, Anita se identificou imediatamente com a força de uma pintura de caráter experimental, forjada numa prática em que a autonomia do fato plástico era o princípio criador.

Anita cumpria corajosamente com suas telas essa premissa básica da arte moderna. Deu a cara à tapa ao expor seus trabalhos num Brasil caipira... e foi violentamente estapeada. Inicialmente pelo conservadorismo de Monteiro Lobato, depois pelo agenciamento ideológico-nacionalista de artistas como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Oswald de Andrade, tão culpados quanto Lobato pela adesão da artista a uma arte mais convencional e programática.

Monteiro Lobato passou erradamente para a história como o único responsável pela decadência da obra de Anita, fruto do ataque que fez num artigo enfurecido chamando aquelas obras e todo o modernismo de "paranóia ou mistificação", apelando para uma crítica muito parecida com a dos nazistas que classificavam a arte expressionista de arte degenerada, de loucos, praticada por artistas que não passavam de doentes mentais. O resultado do artigo do autor de Idéias de Jeca Tatu foi a devolução de quadros já vendidos na exposição, a perda de alunos pela artista e seus constrangimento artístico-social.

Mas pior do que o ataque de Lobato, que a confrontava claramente, foi o contato da artista com os modernistas, que envolvendo-a numa suposta proteção a cooptaram para seus interesses ideológico-políticos de criar uma suposta arte verdadeiramente brasileira, menos radical, como veremos abaixo.

A exposição de 1917 foi visitada também por Mário de Andrade, que foi repreendido pela própria artista que o encontrou rindo de suas obras. Foi o primeiro encontro entre as duas personalidades que se tornariam grandes amigos depois. Para o parnasiano Mário de Andrade daquela época, a exposição de Anita era uma aberração. Sentindo-se culpado pelo acesso de riso incontido diante da artista e de suas obras, e sob o efeito da repreensão de Anita, Mário se desculpou enviando a ela um poema parnasiano. Como se pode ver, Mário nada entendeu da sofisticação e revolução artística de Malfatti.

Posteriormente, Mário iria defender a artista e agregá-la ao grupo modernista, inclusive convidando-a a expor suas obras na Semana de 22. Aliás, as únicas obras realmente modernistas da exposição. Essa amizade e apoio vão se converter numa espécie de constrangimento ideológico ao qual Anita se sentirá obrigada a se submeter diante do nacionalismo social do ambiente sob o qual nosso pseudomodernismo estava se desenvolvendo.

É sintomático, nesse sentido, uma carta de Mário endereçada a Anita no qual qualifica a obra de Tarsila como "as melhores pinturas modernistas que conheço", dizendo que a artista havia encontrado o caminho de uma arte genuinamente brasileira, "brasileira mas brasileira de verdade", "com tipos e santos nacionais" e com "um gosto forte de manacá e abacaxi". Realmente, essas pinturas de Tarsila não passam disso, verdadeiros abacaxis ideológicos. E esta carta de Mário tem como objetivo tentar indicar, indiretamente, um rumo para a pintura de Anita: tornar-se ela também esse abacaxi. Como podemos ver em quadros como Baianas e As bem-aventuranças, ou nos retratos que ela pintou posteriormente, por exemplo, o fato se deu.

Não resta dúvida de que Mário de Andrade tenha defendido Anita. Defesa esta que não pressupõe entendimento da arte de Malfatti como a responsável pela revolução que se iniciara na arte brasileira, mas como anotou Marta Rossetti Batista, a biógrafa de Anita, Mário "encontrava dificuldades para compreender a estranha e masculina liberdade com que Anita Malfatti jogava na tela, espontânea e violentamente, formas e cores". Mário de Andrade "nunca aceitaria completamente as deformações mais gritantes e os maiores exageros de proporções, portanto, os aspectos mais abstratizantes, interpretativos e desligados do 'real', dos trabalhos expressionistas de Anita Malfatti".

Outro fato importante na regressão de Anita foi seu contato com o professor de pintura de Tarsila e amigo de Lobato, o acadêmico Pedro Alexandrino, que representava a negação de tudo o que Anita "aprendera, acreditara e produzira". Eis o conselho que Lobato dava aos jovens artistas e que Anita acabou acatando: "freqüentai Pedro Alexandrino, tomai como norma de vida mental seu ódio a tudo o que é falso, charlatanesco, burlesco, idiota, cúbico ou futurístico".

A amizade com Tarsila, dentro do grupo modernista, também garantiu aspectos conservadores à obra de Anita, que no fim da vida parecia estar copiando os péssimos trabalhos da viajada caipira do interior paulista. Tarsila nunca foi moderna, desde o início de sua carreira abominou as novidades da arte européia de vanguarda e mesmo odiou e desqualificou o poema modernista "Paulicéia desvairada", de seu amigo Mário de Andrade, quando ele o lera para ela no seu atelier.

Tarsila disse que naquela época voltou de Paris num navio de luxo "trazendo uma caixa de pintura com muitas tintas bonitas, muitos vestidos elegantes e pouca informação artística". Isso é notório em sua obra. Por isso passou a vida a pintar seu Brasil interiorano e rural, com procissões religiosas, árvores, bichos e pedras numa adesão à crença num Brasil exótico ou pintando as chaminés, viadutos e trilhos de uma São Paulo em processo de industrialização, mas que em suas melancólicas telas não lembram minimamente a potência do futurismo europeu.

Quando Tarsila mete-se a artista social, pinta o programático, simplório e insuportável quadro Os operários, em 1933, dando ouvido aos clamores de Di Cavalcanti que proclamava que "o artista é um proletário, deve, portanto, compreender o proletariado, aderir a seus objetivos sociais e políticos e a realidade social impõe à visão artística um maior conhecimento do país e de seu povo".

Quanto ao suposto modernismo de Portinari, deixo a palavra com Tadeu Chiarelli: "tanto quanto Almeida Jr. e Di Cavalcanti, Candido Portinari foi um artista preocupado em representar a realidade exterior de seu universo circundante, fiel à etnia de seus personagens, sua condição social, enfim, à realidade física e humana do país. Um artista de extração fundamentalmente naturalista/realista, apesar de certas distorções expressivas presentes em seu trabalho". Ou seja, outro conservador... envernizado de modernista.

É basicamente dentro desse quadro de referências artístico-ideológicas marcadas pelo desejo de construir uma arte de temática social, preocupada com a afirmação de uma certa particularidade nacional, buscando a superação de um estado colonial, que redundaria num projeto de envernizamento modernista (disfarçado de antropofagia), que Anita tentará manter-se como artista. Mas as pressões do ambiente são tão grandes que respirar por conta própria torna-se um problema.

Quem sobreviveria com um projeto artístico autônomo, preocupado com questões de interesse apenas estéticos, num ambiente tão ideológico como esse da primeira metade do século XX brasileiro? Não seria Anita a sobreviver. E com ela naufragou a possibilidade de se criar no Brasil uma arte realmente modernista como a que existiu na Europa, nas formas revolucionárias do expressionismo, dadaísmo, surrealismo, futurismo, cubismo, suprematismo e construtivismo.

Somente um artista do peso de Lasar Segall, vindo da Rússia e passando pela Alemanha, naturalizando-se depois brasileiro, conseguiu manter-se no seu próprio rumo, mesmo em certo momento sendo contaminado pelos colegas modernistas, chegando a tingir de verde suas telas, retratando bananeiras e desqualificados sociais, mas retomando em seguida sua pintura universal e preocupada com os destroços da alma humana de uma forma nada provinciana.

Apesar de Oswald de Andrade ter voltado da Europa com o Manifesto Futurista debaixo do braço, não tivemos modernismo no Brasil e aqueles a que chamamos modernistas foram os principais culpados pela destruição da obra de Anita, a pequena, mas maravilhosa estrela cadente moderna que incendiou num rápido lampejo o ambiente artístico da recém-industrializada e culturalmente caipira cidade de São Paulo.

O legado modernista ao Brasil foi uma faca de dois gumes. Como disse Jorge Coli, "os modernistas nos deixaram óculos nacionais". Ao casar arte e ideologia nacionalista, acabou por nos forçar a ter uma tradição que não consegue pensar a arte por si mesma, descuidando de seu aspecto principal em nome de uma participação política e de um entendimento da nossa realidade nacional. O resultado pode ser visto, por exemplo, no Cinema Novo, rico em idéias e pobre em estética, e toda a nossa sucessão de fracassos artísticos, vangloriados aqui por serem produtos internos (brutos), mas indiferentes ao resto do mundo.

O brado de Schiller, de que "na verdadeira obra de arte a forma mata o conteúdo", não se ouviu por aqui. Ou se ouviu, e se criticou tanto, no Concretismo, única arte brasileira que atingiu um caráter universal. Mas isso é assunto para um próximo papo, entre você e eu, caro leitor. Por enquanto, choremos sobre as cinzas brilhantes de Anita Malfatti.

Para ir além
Anita Malfatti no tempo e no espaço, de Marta Rosseti Batista.
Um jeca nos vernissages, de Tadeu Chiarelli.
A querela do Brasil, de Carlos Zilio.
Modernidade e modernismo no Brasil, de Annateresa Fabris.
― "Ficou antigo ser moderno?", por Jorge Coli (Revista Bravo de março de 2008).

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 16/9/2008

 

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