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Quinta-feira, 18/9/2008 Nem tudo o que é neo é clássico Elisa Andrade Buzzo "Demoliram tudo", me dissera um morador do bairro. Não podia acreditar, teria que voltar ao terreno, vislumbrar o que havia sido e averiguar o que haveria de ser. Resolvo descer a rua paralela mais calma em vez da avenida movimentada e, chegando ao quarteirão universitário, reparo na grandiosidade de um estande de vendas imobiliário. Daqueles que agora se constroem pra impressionar, e depois são desmontados na mesma rapidez em que foram erguidos. "Place Royale". Arcos, croquis ilustrativos, pedregulho estendido como tapete de cerimônia. "100% vendido", avisa adiante a faixa, orgulhosa. Mas então pra que tudo aquilo ― poderia se perguntar quem se detém por alguns segundos ―, também em estilo neoclássico e pronto para ser derrubado daqui a alguns meses de construção. O sucesso foi total antes mesmo do início das obras. Cem por cento se vendeu. Ou se rendeu ao gosto duvidoso. As casas geminadas, as padarias, tudo o que ainda resta, foi cruel ver sendo demolido, transformado em estacionamento. Mas o próprio colégio centenário era demais. Como destruir um prédio do tamanho de um museu, imponente, praticamente indestrutível! A parte histórica do colégio por sorte ainda estava lá, embora o pátio e as construções anexas tenham sido demolidos. E assim o pátio escolar foi o lado mais fraco que se rompeu, agora projetado para ser um pátio romano do século XXI, repaginado em apartamentos residenciais. A cópia da cópia da cópia, adaptada aos costumes luxuosos como em nenhuma outra parte do globo. Administração incompetente, desamor ao patrimônio e quase lá se vai a escola inteira. Em cinco anos de estudos o diretor nunca entrara em minha sala para dizer um bom dia, dar umas palavrinhas de encorajamento, se tivesse sido necessário. Mas os alunos teimavam e continuavam. Amavam a grande casa que, de tão grande, um quarteirão imenso, tinha três portarias. A lanchonete, o barracão com os aparelhos de ginástica olímpica, os banheiros, os bebedouros, o pátio de lajotas vermelhas, o pátio de bolinhas pretas. Desvios que ao longo de anos escolares aprendemos a decorar, se esconder, sentar e conversar. Tudo abaixo, afundado na memória, invisível para subir outras construções mais ou menos edificantes. E, se a comunidade não se manifestasse contra, iria abaixo também o prédio centenário. As lembranças, empilhadas como tijolos, umas em cima das outras. Este empreendimento de alto padrão será mais um daqueles que não param em pé sozinhos; ele é assim, um parasita dos escombros. Pudera, são 4 suítes, depósito e não sei quantas vagas na garagem, segurança, lazer completo, sala gourmet etc. Fora as empregadas, os porteiros, os seguranças que garantem a... segurança. Pois hoje não se faz nada sozinho. Estranho seria abrir seu próprio portão, estranho seria limpar o próprio chão, bater os tapetes, subir as escadas. Dá-lhe mais uma vez o conforto artificial, a eterna dependência, mas que ao menos emprega. Ah, sim! A ilha irreprochável. E o resultado destas grandes obras imobiliárias é a morte lenta dos bairros. Saem as poucas cadeiras que ainda restam nas calçadas, diminui o convívio de igual para igual, o aconchego. O sentimento é de insegurança, afinal, são prédios "visados". O horizonte é pausterizado, creme baunilha pincelado por sacadas envidraçadas. O morador que havia me contado sobre a demolição da escola tinha tamanho orgulho de ter passado a vida no bairro, que me estranhou a atitude já passiva ao relembrar o caso. Foi lá que morou a vida toda, estudou, fez faculdade, conheceu a mulher, casou, teve os filhos, que por sua vez estudaram na referida escola agora sem pátio, metade arrancada do mapa. E, para ele, a notícia fria agora só tinha um ar de buchicho, talvez uma resignação adulta, como a dos velhinhos que tiveram seus sobrados demolidos na mesma rua e hoje vivem pacificamente nos prédios da década de 1970. Crescer, resignar-se, acostumar-se às mudanças de endereço. Continuo a descer o morro já não mais tão alegre. O novo cenário é árido, mambembe, passadista e degenerado. A importância das coisas resta incoerente ― o momento é oportuno para se vender algumas dezenas de apartamentos de alto padrão, não importa se os tratores vão passar por cima de gatos ou casas. O mercado imobiliário está superaquecido, ostentam as revistas de informação para a classe média. O momento, o calor que o passado não mais exala. Bonito é o que é novo, cheira a concreto. Nem tudo o que é novo me atrai. Que memorialismo é esse? Tento colocar na cabeça que a gravidade da situação não é tanta, afinal, restou o prédio histórico. Ainda assim, fala alto a simples tentativa de colocá-lo abaixo. O sinal toca. Me vejo correndo sobre as bolinhas pretas, o início da vida social, as brigas entre reservas e titulares nas quadras poliesportivas. O sinal volta a tocar, desta vez pra me acordar, tudo passou, as histórias são flashes entrecortados por cimento e esfirras de carne. E se eu pensar que o prédio em que estou já foi uma única residência alternada em dilemas e glórias? Não deixa de ser estranha a sensação de contar e fazer parte de uma história de destruídos. Nota do Editor Leia também "Qual a história para a nossa cidade?", de Daniela Sandler. Elisa Andrade Buzzo |
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