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Quarta-feira, 24/9/2008
Don Corleone e as mulheres
Guga Schultze

Tenho a impressão, quase uma certeza, de que a maioria das mulheres adora O Poderoso Chefão, o filme. Ou a trilogia do Poderoso Chefão, as partes um, dois e três. Todas elas. Quero dizer: todas elas, as mulheres, gostam de todas elas, as três partes do filme.

Eu poderia ser menos sintético e menos radical. Ou seja, ser mais político e afirmar que pelo menos a maioria das mulheres que eu conheço gosta desse filme. E acrescentar que nem todos os homens gostam. Mas não. Estou, conscientemente, generalizando. Estou dizendo que estou mesmo fazendo uma generalização.

Antes que algum chato venha me dizer: "você não pode generalizar", digo que posso, sim, e que estou fazendo exatamente isso: generalizando. É um exercício mental tipicamente masculino. É um hábito genético que, provavelmente, tem a ver com o famigerado "y", aquele cromossomo baixinho, invocado e ligeiramente marginal que faz parelha com o outro, aquele "X" grandão e psicótico.

O sexo masculino tem essa dupla dinâmica (os cromossomos "X" e "Y", uma dupla meio desequilibrada) no comando de sua natureza sexual e sua hélice de DNA reflete o modo tortuoso de lidar com o próprio desequilíbrio. Dá voltas e mais voltas e entra em parafuso, literalmente.

O cromossomo "Y" é um tanto quanto desesperado, sem dúvida. Os braços estendidos para cima parecem um apelo mudo e eloqüente aos céus, para que Deus mande uma luz, uma revelação qualquer que lhe permita compreender as mulheres. E está sempre preocupado em como interpretar e em como impressionar favoravelmente o cromossomo "X". Pra ele isso é o "x" da questão.

Mas enquanto o cromossomo "X", esse sim, sem nenhum traço de sanidade mental, promove um par de mamas (valha-me Deus!), de glândulas mamárias atrofiadas e inúteis num corpo masculino, o cromossomo "y" (aleluia!) promove o saudável e masculino ato mental da generalização, entre outras coisas.

E antes que venha o chato, um cara com seu cromossomo "X" muito atuante (que faz dele um anti-generalizador consumado) ou antes que venha alguma chata propriamente dita ― uma mulher ostentando seu duplo X como um arame farpado e diga, com todas as outras letras: "eu sou uma mulher e não gosto do Poderoso Chefão" ―, deixo registrado aqui minha resposta a esses dois: vocês são só exceções. E, por isso mesmo, não pesam no cômputo geral. A maioria dos homens generaliza e a maioria das mulheres gosta do filme do poderoso chefão, é simples desse jeito.

O filme é de 1972 e ainda continua falando para as mulheres algumas coisas que elas gostam de ouvir e que o namorado, o marido, ou qualquer que seja o sujeito que esteja sentado ao lado delas, assistindo com elas, normalmente não ouve. Claro que também existem muitos sujeitos que gostam do filme e o assistem com prazer. E as razões são geralmente óbvias, como são óbvias as preferências masculinas por filmes de gângsters, filmes policiais, filmes de guerra ou faroeste. Porque O Poderoso Chefão é um filme de gângster e é realmente um filme bom. Até aí, tudo nos conformes.

Mas existe algo mais. Fico pensando se nunca ocorreu aos homens perguntar: como é que suas mulheres ou suas namoradas (ou seja lá o que for) não ligam tanto pra Guerra nas Estrelas, ou Apocalipse Now, ou Scarface, ou Blade Runner ou pra qualquer desses filmes do Rambo, mas gostam do Poderoso Chefão? Um filme de gângster? Elas, aparentemente, nem ligam pra esse negócio da Força e do lado escuro da Força (em Guerra nas Estrelas), ou do código de honra de samurais, policiais, soldados e caubóis, mas se encantam com o código de honra daqueles capos mafiosos. Também não gostam de tiroteios em geral, mas aceitam, embevecidamente, a chacina promovida pela família Corleone.

Acredito que, quando o filme estreou nas telas, as primeiras mulheres que o assistiram foram levadas pelos maridos e namorados. A partir daí elas começaram a ir em bandos ou arrastando seus maridos e namorados que não queriam tanto assistir de novo ou simplesmente preferiam ver outro filme.

Bem, acontece que o universo do Poderoso Chefão é muito feminino, capice? Apesar de todos aqueles bigodes, costeletas e revólveres. Ao reforçar o lado familiar e sentimental da história original, para com isso caracterizar uma suposta tradição em famílias mafiosas italianas, o filme (bem mais do que o livro) abriu uma janela imprevista para a visão de um mundo quase ideal, segundo as mulheres.

Alguns pontos merecem uma conferida: temos ali uma família poderosa que preza não tanto o próprio poder mas, principalmente, o fato de ser uma família. Homens educados que respeitam as tradições e os ritos sociais. Batizados, casamentos e cerimônias em geral, tudo segue nos trilhos. Não tem nenhum maluco beleza, cabeludo e mal vestido, contestando a ordem social. Ou seja, nada desse negócio de anti-herói que os homens, principalmente os mais jovens, bobamente cultuam.

Não há nenhum homem sujo, confuso ou perdido, procurando a mãe (esses caras estão sempre procurando a mamãe, no final das contas), nem qualquer das ninfomaníacas de praxe que os autores costumam espalhar nesse tipo de história. Os homens do Poderoso Chefão são protetores. De suas famílias. As funções são bem definidas, ninguém é à-toa e, apesar de haver um drama intenso se desenrolando, não há dúvidas nem questionamentos pessoais. Ninguém tem crise de consciência nem se perde em crises existenciais.

Há um jogo contínuo de promessas, cumpridas ou não; de vinganças com um timing tão preciso como o de um bisturi nas mãos de um cirurgião. Mentiras, trapaças e intrigas correm soltas, mas existe o objetivo mais nobre que as redime: a preservação da família, o bem maior.

Em seu livro de memórias a escritora americana Mary McCarthy (cuja verve encantava Paulo Francis, entre outros) comenta a complexidade única das relações pessoais num universo feminino. No livro, esse universo é uma tradicional escola feminina; onde ela estudou e, sendo a escritora que é, dali extraiu um universo. Segundo ela, nada se compara a essa intrincada rede de relacionamentos, mesmo como um exercício para o crescimento pessoal. Se dar bem num labirinto desses é uma façanha que as mulheres admiram. Segundo Mary McCarthy, as mulheres têm uma aptidão natural para isso. O filme do poderoso chefão tem essa rede de intrigas; não tão complexa, mas que as mulheres reconhecem, compreendem imediatamente e, é claro, tiram de letra.

Também existem coisas que não estão no filme e que, sem dúvida, o torna mais palatável ao gosto feminino. Como, por exemplo, a ausência de propaganda sexual. Porque uma das atividades masculinas mais intensas é a propaganda sexual.

Poetas, músicos, escritores, jornalistas e diretores de cinema, todos gastam suas energias tentando convencer as mulheres a praticar mais sexo. Como em certas espécies de aranhas, em que o macho leva para a fêmea uma mosquinha, um besourinho. Pra distrair a danada enquanto ele "ó". Avestruzes machos abdicam de sua dignidade e fazem uma dança meio ridícula pra cima das parceiras (parece que funciona; com avestruzes e com o pessoal do funk). Pavões abrem a cauda e agitam aquele leque estonteante na frente das pavoas, como se dissessem: "Olha só, você não sabe o que está perdendo!"

É uma tônica no comportamento masculino, na maioria das espécies, essa pressão sexual sobre a fêmea. Na nossa sociedade a coisa toma contornos quase grotescos e a maioria dos homens tenta convencer as mulheres (e principalmente a si mesmos) de que elas querem garanhões. Ou ― um pouquinho mais sofisticados ― que elas querem um igualmente sofisticado (e feminista) atleta sexual.

Bem, deixa eu dizer que elas são bastante mais sutis do que toda essa propaganda maciça. Se você se sente um homem feio e preterido por todas as mulheres, aceite um conselhinho grátis: ande limpo e compre um terno. Não vá na conversa de sujeitos como Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, ou qualquer outro apologista sexual. Seja calmo, educado e formal. Pelo menos aparente ser um cara seguro de si e com objetivos definidos. Entre esses objetivos, fale da linda família que você gostaria de possuir. Alguma mulher vai olhar pra você, meu.

E se você ainda argumentar: "ah, mas por que tantas mulheres legais acabam escolhendo canalhas?". Ok, é uma dúvida recorrente entre rapazes de bem. É o seguinte: canalhas costumam ser nítidos. É tudo uma questão de nitidez. Mulheres têm uma visão muito nítida das pessoas e detectam rapidamente o sujeito embaçado, dúbio e emocionalmente instável demais. Seja mais nítido, e a visão extremamente nítida delas agradecerá a redução do trabalho (que já é mínimo) em detectar as suas fraquezas. As delas não; as suas.

Uma amiga, cuja opinião eu prezo muito, objetou que algumas mulheres se sentem atraídas justamente pelo lado obscuro da psicologia masculina. Certo, mas continuo achando que elas vêem esse lado com a nitidez de praxe. Os candidatos a Darth Vader (são numerosos) podem até intimidar outros homens, mas não conseguem intimidar uma mulher. Pelo menos uma que esteja interessada nele.

Mas, voltando ao filme, imagino o que passa pela cabeça das mulheres quando assistem ao embate entre Kay Adams (a personagem vivida por Diane Keaton) e seu marido Michael Corleone (Al Pacino), na altura em que ele já se encontra como o sucessor direto do chefão, Don Vito Corleone (Marlon Brando). Porque Kay representa também a mulher moderna (sic), e quer, como todo mundo, levar uma vida "normal". A oposição de Kay ao seu marido é moral, ética, e é muito justa mas, por outro lado, compromete a tradição da própria família. Que ela acaba renegando.

É um impasse em que ambos saem perdendo mas ― a história sugere ― a perda de Kay é maior. Ela não quer compactuar com o crime em geral; mas para fazer isso tem que abrir mão de todo um estado de coisas que é caro às mulheres: segurança, poder e a valorização de uma tradição familiar que anda bastante perdida por aí.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 24/9/2008

 

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