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Sexta-feira, 31/10/2008
Minha coleção de relógios
Ana Elisa Ribeiro

As pessoas simples deveriam ganhar prêmios invisíveis. Elas não quereriam ganhar prêmios espalhafatosos justamente porque são simples. Essas pessoas deveriam dar às outras (a nós) uma dica de que presente ou agradecimento lhes serviria melhor. As pessoas simples não toleram ouriçamentos e muito menos presentes exuberantes demais. Elas são assim, tão simples, que parecem as paredes, as poltronas, as televisões velhas. Elas ficam ali ao pé da gente e só as notamos quando lá se vão, bem de costas, quando já não há tempo de alcançá-las. E há umas tantas pessoas assim, que se foram sem que desse tempo de dizer a elas coisas bonitas, que são os presentes de que elas mais gostam. São presentes que mudam a respiração da gente por alguns segundos. Aquele esforço doloroso para não chorar, aquele embrulho na garganta, aquela profundidade incontida nos olhos quase afogados. As pessoas simples passam a vida brincando de fingir que não estão nem aí.

Figuraças
No meu bairro, há muitas pessoas simples, até porque, se elas não o fossem, não morariam aqui. Mas nem todos os moradores são gente simples. Há muitos daqueles cujos olhos frustrados não escondem o desejo de morar em outro lugar, mais chique, mais caro, para parecerem melhores do que podem ser de fato.

Há umas senhorinhas que varrem os passeios todos os dias. Ontem mesmo, alguém me disse que este bairro é o lugar da cidade onde moram mais pessoas velhas. Terceira idade, sei lá que nome se tem dado às pessoas que estão aqui há mais de 65 anos, cumprindo sabe-se lá o quê. Olhando para as senhorinhas que varrem as calçadas não dá para imaginar como elas eram há 50 anos. Nem mesmo que cor de cabelo tinham. A maioria delas os tem hoje ou brancos ou de um caramelo comprado. Mas lhes cai bem, cai sim. Elas não são nem louras nem morenas, que isso parece que é coisa de moçoilas.

Os senhores que ficam sentados nas cadeiras da calçada são também segredos vivos. Parece que podem ter sido engenheiros dos canteiros de obras da antiga cidade em construção. Um deles foi dentista, eu sei, mas dizem que "prático". Outro era motorista não se sabe de quem. Hoje não parecem mais do que habitantes da calçada. E as cadeiras em que se sentam são simples, não são de balanço.

Hoje mais cedo, aproveitei que passava pelas calçadas e resolvi entrar na relojoaria. Uma portinhola pela qual não se aposta nada. Há alguns meses, dividiam espaços lá o relojoeiro e o barbeiro. Faltava reforma, a tinta das paredes era suja e os móveis eram quebrados. O barbeiro foi-se embora, dizem que para morar com a filha no interior do estado. O relojoeiro, que parecia muito amigo do barbeiro, deu graças a Deus. Contou-me que o outro não permitia que se fizesse uma necessária reforma na empresa. Hoje estão lá a parede branquinha, a pintura nova dos móveis e o cofre de estimação, onde ele guarda todo tipo de peça e bateria.

Fui trocar pilhas de vários relógios. Ávido por ter alguém com quem conversar, ele disparou a matracagem assim que pus os pés para dentro da soleira. Contou da família, da filha que terá promoção para major, do genro que não toma remédio, do médico que lhe disse que chás fazem mal. Tratou de me explicar que mal faz a Coca-Cola, que bebe muita água todos os dias e a demora em encontrar um especialista em doenças do trato digestivo.

Dizia ele que o doutor sabia de tudo, especialmente do que deveríamos evitar. Que médico não manda, médico pede para evitar. Que o que a gente pensa que faz bem, às vezes, na expressão dele, "faz efeito retroativo". Essa frase me desconcentrou por alguns segundos, mas consegui entender o que ele dizia, enquanto observava a precisão meio trêmula com que ele mexia na máquina do meu Technos. O relojoeiro dizia que os chás são de plantas e fazem mal, só mesmo o chá de camomila pode prestar para alguma coisa. Que médico é médico, mas que há as pessoas "que se diz ignorantes", que são aquelas que teimam com coisas bestas. E ele me dizia que a moça da esquina de cima veio trazer os relógios da filha para consertar. E que a menina sofreu um acidente doméstico e quase perdeu a mão, uma tristeza.

O relojoeiro comia meu tempo. Nas mãos dele, minha pequena fortuna em relógios baratos. E ele comentava os relógios quadrados do Faustão. E dizia que as máquinas dos meus não eram ruins. Mesmo a daquele meio genérico. O relojoeiro trocava as baterias e depois fazia questão de acertar as horas. A cada vez que ele fazia isso, eu me esgueirava por trás do vidro para ver que horas eram e quanto tempo ele havia surrupiado sem que eu notasse. O relojoeiro falou mais um belo bocado de assuntos diversos e deixou minha tarde comprida. Eu escutei como uma menina que ouve histórias pela segunda ou terceira vez. O relojoeiro ajeitou sete relógios.

Quatro reais cada bateria. Ele não tinha troco. Fez tudo por vinte vinténs, que era a nota que eu tinha abaixo da maior. Não quis completar os outros tantos que faltavam. Disse que tinha que me fazer "uma gracinha". Freguesa boa, volta sempre. Mas ele queria mesmo era agradecer a conversa durante bem mais de meia hora. Acho que queria agradecer minha escuta sincera, especialmente quando eu fazia cara de surpresa ou quando tecia um comentário ameno qualquer. O tempo do relojoeiro escorre. E ele sabe.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 31/10/2008

 

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