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Terça-feira, 23/9/2008
Três vezes Mirisola
Rafael Rodrigues

Marcelo Mirisola é um gênio. É o melhor escritor brasileiro em atividade e, talvez, um dos poucos nascidos no século XX que será lido daqui a décadas ou, se este mundo não "acabar" antes, centenas de anos. Mirisola poderia, se assim quisesse, até assinar seus textos com o seguinte pseudônimo: Machado Rodrigues (ou Nelson de Assis, tanto faz), visto que há na sua escrita a classe, o humor e a ironia de Machado de Assis e o caos delicioso de Nelson Rodrigues. Isso tudo na opinião dele, claro. Para mim, Marcelo Mirisola não tem nada de Machado de Assis, Nelson Rodrigues ou qualquer outro grande autor, e não passa de alguém que publicou uma porção de livros e que, por causa disso, se diz escritor.

Digo isso baseado na leitura de O homem da quitinete de marfim (Record, 2007, 240 págs.), que reúne as crônicas que Mirisola escreveu para o extinto site da AOL durante o ano de 2004, e na tentativa frustrada de ler mais outros dois livros seus: o romance O azul do filho morto (Editora 34, 2002, 172 págs.) e o volume de contos O herói devolvido (Editora 34, 2000, 190 págs.).

Em uma de suas crônicas, o autor diz: "quero o horror pelo horror e vou do nada a lugar nenhum". E assim podem ser definidos todos os três livros citados: páginas repletas de críticas, ofensas e palavrões que surgem do nada e não têm objetivo algum, a não ser "o horror pelo horror".

O homem da quitinete de marfim é um livro sem quê nem pra quê. Li praticamente todos os textos de cabo a rabo ― admito que pulei uma crônica e li umas três ou quatro pela metade ― e não consegui gostar de nenhum deles. Aliás, minto: houve uma única crônica pela qual me afeiçoei, digamos assim: "SP Fashion Week", na qual Mirisola critica o mundo da moda (meninas novas demais, magras demais, algumas que ganham pouco demais ou são enganadas pelas agências de moda, essas coisas; ou seja: nenhuma novidade, mas não deixa de ser um assunto interessante), e há uma outra que vale a leitura porque se refere ao escritor japonês Junichiro Tanizaki. No mais, o que vemos são textos confusos (em um deles, por exemplo, Mirisola consegue citar Saddam Hussein, uma pesquisa científica, Ed Motta, Daniel Piza e Lula!), quase todos equivocados e que vão "do nada a lugar nenhum". Quando digo "quase todos equivocados" é porque há alguns comentários acertados sobre política (à época corria a história do mensalão). Trechos isolados dentro de textos prestes a desabar, de tão mal estruturados.

O problema, a meu ver, é a crítica gratuita e nada construtiva. Personalidades como Walter Salles Jr., Rubens Barrichello e Ayrton Senna são criticadas e atacadas arbitrariamente. Mirisola reclama, por exemplo, de nunca ter visto Senna se referir a livros, ou ser associado a eles. Por mais que seja uma brincadeira do autor ― se for, é de muito mau gosto ―, não se justifica; é uma cobrança totalmente absurda e despropositada. É como recriminar Machado de Assis por não jogar bola nos fins de semana.

Espécie de Diogo Mainardi do meio literário, falta a Mirisola o bom senso que o colunista da Veja tem. Enquanto o primeiro tem como objetivo derrubar um governo, denunciar esquemas de corrupção e sacudir os leitores de sua coluna, levando-os a serem cidadãos mais críticos e exigentes, o segundo simplesmente atira para todos os lados sem qualquer critério ou finalidade.

Das crônicas, passei para a ficção. Pensei que no terreno da invenção Mirisola pudesse se revelar um bom escritor. Sou, apesar de tudo, um otimista. Afinal, existem autores que não conseguem acertar a mão em textos não-ficcionais, apesar de muito tentarem. E imbuído de esperança tirei da estante o já citado romance O azul do filho morto.

Pode até ser falta de sensibilidade minha (duvido muito), mas depois de ler mais de trinta páginas de divagações de um narrador completamente obcecado por sexo e palavrões, resolvi interromper a leitura. Até li trechos adiante, na tentativa de encontrar alguma passagem que me fizesse mudar de idéia e voltar a ler o livro. Às vezes isso acontece. Há livros que só ficam interessantes depois de não sei quantos capítulos. E isso já aconteceu comigo pelo menos uma vez (foi quando li A história do amor, de Nicole Krauss). Ciente disso, percorri páginas e páginas em busca de algo animador e que apagasse a má impressão que as primeiras trinta haviam deixado. Até os parágrafos finais do livro eu li, porque a esperança é a última que morre, certo? Mas de nada adiantou.

Foi também o que aconteceu com os contos de O herói devolvido. Depois de ler cinqüenta páginas de palavrões, sexo, fluidos corporais e reclamações sem qualquer sentido ou objetivo, e nem sequer me divertir com nenhuma das histórias contadas, desisti. Nem as referências a John Fante e Julio Cortázar, escritores que muito admiro, me fizeram seguir adiante.

É certo que há gosto para tudo. E se Marcelo Mirisola vem sendo publicado há 10 anos, é porque algum público ele tem. Bom para ele e para quem gosta dele. Não para mim, que perdi uma semana em leituras nada proveitosas, enquanto poderia ter lido coisa melhor.

Apesar de tudo, é necessário reconhecer que Marcelo Mirisola é um dos poucos escritores brasileiros com autonomia e, vá lá, coragem para escrever o que quiser sobre o que (e quem) bem entender. Segundo ele, é o único. E Márcia Denser seria a única escritora com liberdade semelhante (também segundo Mirisola). Não diria que são os dois únicos autores brasileiros a desfrutar de tal privilégio, mas realmente são poucos os que se expõem (e expõem) tanto.

Sem contar que ao menos em uma coisa sou obrigado a concordar com ele. Em várias crônicas Mirisola afirma que Budapeste, de Chico Buarque, é um péssimo livro. Nisso ele tem razão.

Para ir além











Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 23/9/2008

 

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