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Sexta-feira, 26/9/2008 Vida Virtual? Quase 10 anos de Digestivo Andréa Trompczynski Há dez anos eu era uma menina inocente. Do tipo que ainda lia Gabriel García Márquez e achava que a literatura eram os livros. Conservadora, ainda não tinha conhecimento do que era a crítica ou a boa discussão. Ainda não havia tido grandes pensamentos, grandes opiniões sobre as coisas. Ah, eu era tão feliz, ia à Igreja aos domingos, amava meu marido e fazia bolo de fubá à tardinha, nessas felicidades que só a ignorância pode proporcionar. Então, numa tarde, meu irmão ensina-me os primeiros passos para entrar na rede. "Você precisa conhecer, Andréa, você precisa ler isto". Eu precisava conhecer. Comecei, então, nas incursões que iriam mudar minha vida para sempre. O primeiro lugar em que fui foi uma antiga sala de cinema, onde conheci um daqueles que hoje é meu grande amigo. Uma amizade que formou-se aos poucos, noite após noite, da sala aos e-mails, às antigas cartas, seladas e carimbadas, daí para os telefonemas e, a chamada pelos especialistas, vida real. Tremíamos os dois, habituados ao quarto fechado e o computador, no primeiro encontro. Rimos, achando tudo aquilo muito nonsense e nos abraçamos numa rodoviária de cidade do interior. Um abraço que dura até hoje. O irmão insistia, aos brados, que eu precisava conhecer aquele site de nome estranho, o Digestivo Cultural. Relutei, por um tempo, afeita que estava ao bate-papo virtual, como todos já estivemos um dia. Cultural? Eu pensava que haveria lá um bando de senhores resmungões escrevendo didaticamente sobre as artes, a cultura. Curiosa, já em 2001, num certo dia em que meus amigos ainda não haviam chegado na sala para que matássemos novamente a pedradas o cinema iraniano ou para que pudéssemos incensar Barbarella, nas delícias de pensar sermos os donos de toda a verdade, entrei pela primeira vez neste que seria o meu primeiro guia em meio a uma cegueira da qual eu ainda não tinha conhecimento. Li um texto do Julio Daio Borges e comentei; qual não foi minha surpresa quando ele, rapidamente, respondeu. Doce e inocentemente, como eu, à época. Conversávamos os dois, jovens e ainda um pouco idealistas, sobre livros e a vontade de escrever. Ah, então era assim? Poderíamos conversar com o autor? Discordar, trocar idéias e opiniões? Que novidade! Para mim, autores eram aquelas figuras casmurras das noites de autógrafos, e, pobrezinha de mim, eu nem sequer imaginava, à época, que havia autores da minha idade. Comecei a ler os colunistas, primeiro, o Alexandre Soares Silva, já falando em livros que iria publicar, ensinando-me os primeiros passos para uma ironia que me acompanha até hoje. O Alexandre falava, era lei; dizia que leu, eu lia. Ouviu? Ah, eu ouvia. Demorei para, lembro-me, ter a coragem de discordar do Alexandre. O Fabio Danesi Rossi. Minha relação com ele, como leitora contumaz, daria um capítulo, meus caros, um capítulo! Incitava-me a discordar da minha professora de literatura, "meu gosto pela leitura sobreviveu aos professores de literatura". Ver que meu santo ― minha professora era, na época, um ídolo ― tinha pés-de-barro? Deus! E era ateu! E falava isso assim, como se isso fosse um "bom dia", o que, para mim, acostumada à vidinha católica provinciana, era um palavrão. Hoje, sem fé que sou, o que causa a estranheza e olhares piedosos das pessoas, o releio, compreendendo. E como releio... Releio, quase que diariamente o Paulo Polzonoff Jr. Vi aquela fotografia, em sua apresentação, que não é mais a mesma de hoje, do menino de semblante triste, óculos, sentado à uma mesa de um bar. A fotografia era de uma solidão tremenda. Se alguém me perguntasse hoje qual meu texto favorito, direi hoje e diria sempre que foi o "Está Consumado", coluna histórica do Digestivo Cultural, que, à época, causou frisson nos mais moralistas, caindo como uma bomba: "este texto não é recomendado para quem faz uso contínuo de antidepressivos". E seguia o Paulo me guiando pelo labirinto da solidão, pelo labirinto da descoberta de nós mesmos. Luis Eduardo Matta, meu caríssimo. Quanto devo à você. Imaginem vocês se a clássica menininha algum dia gritaria contra James Joyce, imaginem vocês se a conservadora guria algum dia defenderia o direito de ler escondido Agatha Christie. Não mais colocar sobre o exemplar de algum livro do Frederick Forsyth uma capa falsa de Ulisses, para levar ao parque e impressionar as senhoras bordadeiras. Ao LEM, obrigada. Hoje eu leio você sem culpa. E posse falar que leio você sem medo. Tenho até disso um certo orgulho iconoclasta. Posso lhe escrever agora, ou deixar um scrap no seu Orkut, contando-lhe o único desejo verdadeiro que tenho hoje: por favor, não mate a Evelyn Wakim! Que morra o Leopold Bloom, mas não a Evelyn Wakim. E eu sei que você irá responder. Ontem, eu procurava meu próprio nome do Google, sim, sim, tenho essa torpeza de espírito. Num fórum havia um leitor um pouco empolgado que me colocava como parte de "uma geração da internet brasileira". Juntamente com todos que citei acima. Exagero, é claro, já que eu mesma escrevi pouco por perder muito tempo andando pelo mundo procurando a mim mesma. No mundo, eu pedia ao querido irmão que me enviasse as páginas impressas do Digestivo Cultural. E eu as lia, desesperada pela distância que separava-me de meu computador e meu riquíssimo "quarto de livros", em beliches e camas e sofás de casas de amigos pelo mundo. Falaremos do Digestivo, todos nós, daqui a muitos anos. Começamos quase todos aqui, seja em colunas, em participações antigas, links para os blogs, comentários que valem por uma coluna. Uma geração que se iniciou há dez anos, vivenciamos o boom da internet, aprendemos a pensar, criticar, discutir. Olhando para trás, para esses dez anos, concordo com o empolgado leitor: faço, sim, parte dessa geração. Ah, amigo verdadeiro e real, amores que morreram tragicamente, inimigos fiéis e até, pasmem!, uma filha. Sento-me aqui em frente ao meu computador. Leio, converso, amo, vivo. Quem disse que isso é vida virtual? Nota do Editor Leia também Especial "2000 Colunas". Andréa Trompczynski |
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