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Sexta-feira, 10/10/2008 Saudades de Jorge Amado Luis Eduardo Matta Era o começo da noite de 6 de agosto de 2001. Uma segunda-feira. Após mais de uma semana trabalhando recluso por cerca de quinze horas diárias eu, enfim, punha o ponto final na segunda versão do meu romance Ira implacável: indícios de uma conspiração, originalmente escrito em 1996 e que acabaria publicado em 2002. Na realidade, eu apenas acreditava estar colocando o ponto final, uma vez que, três dias depois, um atentado em Jerusalém destruiu uma pizzaria onde se passava uma cena do livro. No estabelecimento, situado na esquina das ruas Jaffa e Rei George, três personagens meus comiam uma pizza enquanto estendiam um mapa da cidade sobre a mesa a fim de localizar um bairro onde, acreditavam, estaria escondida a pessoa que procuravam. Como eu não sabia se a pizzaria continuaria funcionando após o ataque, já que ela havia sido reduzida a escombros, achei por bem suprimir a cena e colocar os meus personagens seguindo diretamente do hotel para o tal bairro, já cientes do percurso a fazer. Seja como for, naquele 6 de agosto senti uma alegria indizível, a alegria que, creio, a maioria dos escritores sente ao ver um trabalho de meses ou anos finalizado. Mas foi por pouco tempo. Instantes depois, quando eu me preparava para jantar, tocou o telefone. Era minha agente comunicando que Jorge Amado tinha acabado de falecer num hospital de Salvador. Ela sabia que eu gostava muito de Jorge Amado e, de fato, o chão me faltou naquele momento. Provavelmente, foi a única vez em toda a minha vida, até agora, que senti a morte de uma pessoa estranha, com quem eu nunca estivera, quase como se eu tivesse perdido alguém do meu círculo de amizades. Afinal, foi graças a uma entrevista dele e de Zélia Gattai no programa do Jô Soares, levada ao ar em janeiro de 1992, que, aos dezessete anos, descobri a vocação literária, sendo que, naquela semana, por coincidência, eu estava lendo Jubiabá. E embora o meu trabalho não possua nenhuma semelhança com o de Jorge Amado, sua literatura teve um papel decisivo nos primeiros anos da minha jornada como escritor, além de ter sido uma grande companheira num período extremamente importante da minha vida. Uma das várias recordações que guardo das minhas temporadas na chácara da família, em Maricá, durante a adolescência, é a das noites de verão quando a cidade, algumas vezes, ficava sem energia elétrica ― circunstância bastante comum naquela época, sobretudo durante o carnaval ― e eu passava horas recolhido num canto, mergulhado nos livros de Jorge Amado, sob a luz de um lampião antigo ou, muitas vezes, de velas. Era como se, de repente, eu retrocedesse no tempo e me visse transportado para dentro de suas histórias. Com efeito, eu era capaz de enxergar nitidamente os ambientes rurais e arcaicos da região cacaueira, a Ilhéus das primeiras décadas do século XX, os coronéis e jagunços, aquela misteriosa, mítica e fascinante cidade de Salvador, repleta de segredos, intrigas, sensualidade e sortilégios, os terreiros de candomblé, a poesia melancólica do cais e dos homens do mar... Toda aquela atmosfera tão tipicamente baiana e, ao mesmo tempo, tão representativa de aspectos fundacionais da nossa alma brasileira, que Jorge Amado soube sintetizar com tanto lirismo e generosidade, me tocava profundamente e a minha admiração pelo escritor aumentou ainda mais quando passei a ler e a assistir às suas entrevistas e depoimentos. Jorge Amado, a despeito da sua notoriedade dentro e fora do Brasil, cultivava uma simplicidade admirável no modo de pensar e de se expressar. Na entrevista de 1992 (na verdade ela fora gravada em meados de 1991, e reprisada naquele mês de janeiro), Jorge discorreu, sempre com bom humor e uma desconcertante naturalidade, sobre suas influências literárias, declarou que era um leitor apaixonado tanto de romances policiais quanto dos grandes clássicos, e falou de muitos livros e autores com o conhecimento de causa e a intimidade sem pompa que os que lêem com prazer e regularidade costumam ter ao comentar suas experiências pelo universo da literatura. Zélia Gattai também se saiu muito bem, contando casos engraçados da família e peculiaridades do processo criativo dela e do marido. Não sei ao certo quantos dos mais de trinta livros publicados por Jorge Amado eu li, mas não foram todos e confesso que não gostei de dois ou três, como Tocaia grande ― que, aliás, pretendo reler em breve a fim de confirmar ou não as minhas impressões de quase vinte anos atrás. Estes, porém, foram casos excepcionais. No geral, eu e a literatura amadiana sempre nos entendemos bem. Da sua fase, digamos, mais politizada, entre as décadas de 1930 e 1950 quando surgiram obras-primas como Mar morto e Capitães da areia até o estágio posterior, menos ideológico e de teor mais satírico e brejeiro, iniciado com Gabriela, cravo e canela e cujo ápice, na minha opinião, se deu com Tenda dos milagres, Jorge Amado manteve-se fiel aos seus princípios como cidadão e escritor e reproduziu, como poucos, a linguagem e a realidade da gente simples da Bahia, passando ao largo das inúmeras críticas ― que o acusavam de possuir uma linguagem pobre, uma estética vulgar e uma temática populista e repetitiva ―, e acabando por criar uma voz única na ficção brasileira que, de tão autêntica e intensa, atravessou fronteiras, celebrizando-se nos recantos mais diferentes do planeta. É verdade que essa consagração contou, ao menos nos primeiros anos, com o apoio do Partido Comunista, no qual Jorge militou até que os crimes de Stalin fossem revelados e ele, horrorizado e decepcionado, rompesse com a agremiação sem, contudo, abdicar das preocupações com as questões sociais. No entanto, mesmo a máquina de propaganda mais eficiente não é capaz de sustentar por décadas o prestígio e o êxito comercial de um artista destituído de talento. Jorge Amado foi, acima de tudo, um exímio contador de histórias, cujos personagens e cenários superaram a ficção e se infiltraram no imaginário e no anedotário brasileiros a ponto de, no começo da década de 1990, uma localidade na Bahia chamada Jandaíra, à qual pertence a praia de Mangue Seco, haver mudado de nome para Santana do Agreste, que é a cidade fictícia do romance Tieta do Agreste. Este livro, aliás, inspirou uma telenovela homônima de grande audiência, exibida em 1989, mesmo ano em que o escritor recebeu uma homenagem da escola de samba carioca Império Serrano, num belíssimo desfile ao qual assisti. O tema do enredo, Jorge Amado ― Axé Brasil, foi um dos melhores daquele ano, ao lado dos sambas da Arranco do Engenho de Dentro e da Imperatriz Leopoldinense, e um dos trechos dizia: "Põe tempero na panela, Gabriela/ Mexe, mexe com amor/ Cozinha com o teu calor/ Bota logo o vatapá na tigela/ Quem mandou foi Dona Flor(...)". As adaptações da obra de Jorge Amado para o cinema e televisão foram numerosas e contribuíram decisivamente para difundir ainda mais as suas histórias entre o povo que, em todos os estratos sociais e culturais, se identificou de imediato com elas. Após a decepção com Tocaia grande, não tive ânimo de ler os romances posteriores de Jorge Amado, como O sumiço da santa, e acabei não conhecendo a fase final da sua obra. Consultando os meus arquivos, porém, encontrei um depoimento de 1995, no qual Jorge Amado, ainda em forma, falava a respeito de um dos romances que estava escrevendo na época, sobre a luta pelo poder na década de 1920 no sertão da Bahia entre os grandes latifundiários e a alta hierarquia católica. A trama era inspirada num episódio inusitado e pouco conhecido, ocorrido há décadas numa cidade do Médio São Francisco chamada Pilão Arcado. A cidade era, então, dominada por um poderoso coronel que, em dado momento e por uma razão que desconheço, desentendeu-se com o bispo da Barra, a principal autoridade eclesiástica da região, deflagrando uma crise com a Igreja. Isso levou o coronel a expulsar o padre católico e converter Pilão Arcado, à força, numa cidade protestante, inclusive fazendo vir um pastor de fora. Ao que consta, a situação não foi duradoura, pois logo o arcebispo da Bahia interveio e atendeu as exigências do coronel. Jorge Amado chegou a escrever as primeiras páginas do romance, cujo título seria "A apostasia universal de Água Brusca", mas a deterioração progressiva da sua saúde a partir de 1996/1997 o impediu de levar o projeto adiante e o escritor acabou falecendo sem concluí-lo. Eu me lembro de ter ficado na maior curiosidade para ler esse livro e cheguei até a esboçar uma carta que pretendia enviar para a casa do Rio Vermelho perguntando sobre o seu andamento, mas as notícias sobre as sucessivas internações do escritor e o grave problema de visão que o acometia me fizeram desistir. Enquanto redijo este artigo, observo, pousado aqui na minha mesa, um exemplar de Navegação de cabotagem, o livro de memórias que Jorge publicou em agosto de 1992, por ocasião dos seus oitenta anos, e que ele afirmava tratar-se ― como, aliás, deixou bem claro no subtítulo ―, meramente de "apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei". A edição ainda é da Record, de 2006; foi um presente de Julio Daio Borges e conta com um texto de apresentação de Paloma Amado, que, de maneira fluente e emocionada, reconstitui os meses de elaboração da obra e o entusiasmo que se apossara da família na ocasião. Faço votos que, em 2012, o Brasil não se esqueça de celebrar o centenário de nascimento de Jorge Amado. E espero que, até lá, a atual situação de descaso pela qual passa a Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho, guardiã do formidável acervo legado pelo escritor, já tenha sido revertida para o bem da memória da Bahia, do Brasil e da nossa literatura. Luis Eduardo Matta |
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