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Sexta-feira, 3/10/2008 Trocar ponto por pinto pode ser um desastre Ana Elisa Ribeiro E não apenas ponto por pinto. O contrário também. Ou trocar peito por peido. Força por forca. E os exemplos seriam infinitos. Já vi disso um tanto. Uma letrinha aqui e outra ali, pronto. Uma tragédia. Se o olho não é bem acostumado a desacelerar a mirada, as letras se infiltram entre as frestas e não saem. Só aparecem depois que a obra está impressa. Parecem praga. Sempre escapa um acentozinho, uma cedilhazinha, um rr, um ss, um u no lugar de l. É assim mesmo. E tem gente que faz disto a profissão: bloquear as escapulidas. Mas quem pensa que o serviço de revisão de textos só depende de regra gramatical e de decoreba em dicionário, está enganado até a medula. "Olhadinha" básica qualquer um dá. Basta se achar em condição. E esse é um problema de técnica, sim, mas também de experiência. Pergunte-se a qualquer editor mais velho o que ele acha. É tiro e queda. Revisor bom é peça rara. A profissão do revisor não é assim tão simples. Tem lá suas nuanças. Ora o nome muda, ora o jeito se altera, assim como a remuneração. Vez ou outra alguém sai com aquele estereótipo do gramático chato. Quando alguém descobre que você é revisor, trata logo de tomar alguma destas atitudes: a. fala menos na sua frente; b. não escreve mais para você; c. começa a pedir desculpas no final dos textos; d. passa a monitorar a fala muito além do normal; e. faz perguntas esdrúxulas, como se você tivesse a obrigação de ser um dicionário de exceções ambulante. Não raro param você no corredor para "dar aquela olhadinha" no convite de aniversário, no santinho da tia morta, se bobear, até na placa do carro. Ou reparam em qualquer placa na rua para pedir explicações sobre se aquilo "pode" ou "não pode". Também não faltam lendas: a do cara que pôs na porta da oficina de bikes "conserto bicicleta e pinto". Ou a do açougueiro que achou melhor especificar: "vende-se frango-se". Vai saber. Há livros sérios sobre isso, esse "português popular", mas também há lendas em todo canto do Brasil. A figura do revisor é transparente. Parece que não está lá, mas está. Não fosse ela e a vida poderia ser pior, ao menos a leitura mais atravancada. Mas se o revisor tenta desobstruir o caminho do leitor, ao autor não soa tão bonzinho. Há autor que não viva sem um desses fiéis escudeiros, mas há, de outro lado, até grupo de extermínio formado por autores encapuzados loucos pela pele do revisor maldito. Quando o livro é bom e bem-escrito, o mérito é do autor, claro. E de quem mais poderia ser aquele gênio? Mas quando o livro é mal-escrito, estão lá os créditos de revisão e preparação que não mentem nunca. A culpa é de um desatento, mal-amado, invejoso, sabotador de autores indefesos. É isso. Vez ou outra, o revisor ganha posto de autoridade, principalmente quando o dono do livro se acha incapaz. Mas quando é advogado, jornalista, professor, Deus acuda o coitado. Um embate de egos e gramáticas rola dramático no palco dos textos escritos. Os tipos são os mais diversos. Há o revisor-colaborador, realmente preocupado em ajudar, uma espécie de ponte entre autor e leitor, cujo tapete vermelho é o texto, tratado com carinho e consideração. O infeliz vive acobertado pelo mau hábito da escola de dizer, a vida inteira dos estudantes, que o que existe é uma trinca super-heróica: autor, texto e leitor. Esquecem-se, comumente, de dizer que entre uns e outros, aí, bem nesse meio, tanta outra gente põe sua mãozinha. Há o tipo sádico, revisor que quer cortar, limar, banir, amassar. Revisor que não se contenta em dar uns retoques de maquiador, pinçando apenas pelinhos espalhados aqui e ali. Não, este tipo sádico quer ver autor morto, quer fazer buraco sem anestesia, quer competir. Revisor não tem glamour. Em geral, se torna o que é por acaso. Um acaso bom, diga-se, já que este é um mercado eternamente em expansão. É só fazer a conta: quantas pessoas você conhece que escrevem bem? E quantas escrevem muito bem? E quantas pensam que escrevem bem? E dessas nuanças há muitas. Nem vale a pena compor aqui uma escala, um degradê de possibilidades. O negócio é que o revisor age aí, na oportunidade que surge da escrita capenga da maioria. E mesmo assim ele não é imprescindível, não. Tanto livro, jornal, revista, folheto que se publica sem o menor asseio. A metáfora da limpeza é condenável, mas fazer o quê? Ainda assim, muito editor de livro importante pensa que é só dar uns tapinhas nas costas dos livros que os problemas caem como poeira no chão. Não querem pagar "só para alguém ler". Ou até querem, mas vão pagar mal, alegando que "é só uma olhadinha". Revisor existe há muito tempo. Muito mais do que se pode pensar. Revisor é uma espécie dessas que parecem extintas, mas que quando menos se espera, renascem dos grafites e das canetas. Quem diria que a internet ajudaria a dar mais fôlego a esse cara? Tudo bem que agora mais equipadinho, mas dono de práticas centenárias. Revisor merece até ser protagonista de livro importante. É necessário ler História do cerco de Lisboa, do abertíssimo José Saramago, para entender melhor em que universo vive um revisor. A última palavra é do autor, o livro também tem lá sua autônoma autoridade, mas está ali um revisor que deixa ver bem quem é esse cara. Em geral, na vida real, uma mulher. Revisor empreendedor tem empresa própria e emite nota fiscal. Cumpre prazos e nunca tem final de semana. Trabalha em casa, é certo, mas tem lá suas descompensações. Do cliente viciado, que não deixa passar nada sem aquela consultadinha, nem que seja por telefone, até aquele cliente que surge do nada e quer o serviço para ontem. Em geral, aliás, é para ontem, se não para anteontem. Os prazos estão todos estourados, mas a vida não está ganha. Passa na porta de casa o moço com a família, indo para a praia, mas deixa o pacote grosso nas mãos do revisor, na sexta à noite, que é para dar tempo de revisar para segunda. Não é isso? Tem de respeitar. E apesar de tudo isso, lá vem o moço, com cheiro de protetor solar, na segunda cedo. A questão é: posso dar cheque pré-datado? O serviço do revisor deveria ser pré-datado também, não é, não? Que relação é essa que acontece ali, entre o texto e o leitor profissional? E que papo é esse de "leitor profissional"? O que meu olho faz que o dos outros não aprendeu a fazer? E olha que o olho é o de menos. Pior é o que é necessário saber. Está aí o Rafa, revisor desta coluna, que não me deixa mentir. Que o revisor precisa saber a norma, a dita "língua padrão", isso todo mundo sabe. Mas e quando não precisa? Pior: e quando não pode? Como é que fica? Certa vez uma revisora "limpou" todas as marcas de oralidade de um texto escrito para uma peça de teatro. É tão trágico quanto encher de solecismos uma dissertação de mestrado. E a revisora que queria "corrigir" a linguagem de um livro infantil narrado por uma rã? Mais triste do que quando trocam ponto por pinto e peito por peido, não é, não? Ana Elisa Ribeiro |
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