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Sexta-feira, 17/10/2008
O suficiente para ser feliz
Ana Elisa Ribeiro

"Ei, Lili! Parabéns. Muitas felicidades! Bjim, tia Silvinha". A mensagem está guardada na memória do celular. Era dia dos meus 33 anos e eu estava ali, meio desanimada. Não me lembro se respondi. Quase todo ano era isso. Aos 34, não haverá mensagem no celular e nem cartinha na caixa de correio.

Quando eu nasci, ela tinha 11 anos. Uma menina cheia de sonhos que queria ter uma boneca. Na falta de brinquedos de plástico, a irmã mais velha prometeu, passando a mão pelo barrigão: "Vou te dar uma bonequinha de verdade". E deu. No final de agosto nascia o brinquedo que chorava, fazia xixi e aprendia coisas.

"Esta é minha bonequinha". Nem sei quantas vezes fui apresentada assim às pessoas. Aos familiares mais distantes, aos chefes dela, aos amigos, namorados, conhecidos. "Minha bonequinha" e lá vinha a história toda.

A bonequinha aprendia a falar, a andar, a correr. Tinha os cabelos ondulados e era bom brincar de cabeleireira. Com um secador razoável, brincava de fazer escova, caracol, friso, virava as pontas para dentro ou para fora, alisava, cacheava. E a bonequinha nem sempre achava legal. Vez ou outra, a bonequinha geniosa corria para o banheiro e molhava tudo. Titia achava uma graça.

As visitas à casa da avó eram gostosas como pouca coisa é. Não tinha biscoito nem bolo de fubá, como nas histórias infantis. Não tinha avó de cabelos brancos. Minha avó era alta, de cabelos pretos, culta e pouco afeita à cozinha. O que tinha era livro.

Na estante da avó, os clássicos universais, incluindo a mitologia, que tanto me encantava. Mas a estante da tia ainda parecia mais acessível para uma pré-adolescente. Pimpinela Escarlate foi o livro que ela emprestou primeiro. Ou foi Chore não, Taubaté? Talvez O mundo é assim, Taubaté. Ou Jane Eyre. Livros de bolso, pouco ilustrados, que li avidamente. Seguidos de obras de Erico Verissimo e talvez de outros contos infanto-juvenis. Mais à frente, No ar rarefeito.

Engenheira. Só ela possuía computador na família. E socorreu meus anseios de entender como aquilo funcionava. Liga aqui, aperta aqui, espera abrir, um 386, acho. Fiz trabalho de Geografia em impressora matricial. E Silvinha gostava do barulhinho da agulha. E depois aprendi a fazer outros trabalhos e era ela minha mentora.

Cresci. Tia Silvinha também. A gente do bairro nunca sabia ao certo se éramos primas ou sobrinha e tia. Éramos muito próximas e muito novas. Mas eu cresci, fui estudar, namorar, casar, engravidar. Silvinha mudou de profissão, virou professora federal, foi morar em outro lugar, viajou, amou, fez 44 aniversários.

Na semana que passou, ela fez sua última viagem de Congonhas para cá. Antes de chegar, voou. Acho que não teve nem tempo de pensar. Escapuliu da vida, mas não se esqueceu de deixar sorrisos com as pessoas antes de partir.

Ao saber da notícia, as mãos trêmulas da sobrinha quase não seguravam o telefone. Como assim? Não pode. Essa não é a ordem esperada. Essa brincadeira não vale. A palidez do medo e a dor infinita de uma saudade arrependida. A gente nunca sabe aproveitar as pessoas. Pior é quando a gente discute com elas por causa de bobagens e elas se vão, deixando amargores no céu da boca. Não foi o caso. Mas na última festa, só acenei um "Oi" à distância, precedido pelo "Ei, Lili" dela. E me arrependo de não ter vivido ali o maior abraço do mundo. Como se fosse uma despedida.

O namorado sentiu a mesma coisa: "Acho que eu não soube aproveitar toda a luz que ela tinha". Ninguém nunca sabe. E isso não é resignação. É que esta brincadeira de estar vivo é assim mesmo, mal-aproveitada. Mesmo quando a gente pensa que se esbaldou. Sempre faltou. E eu fiquei devendo para ela um "Como você está?", um beijo na bochecha maquiada, um "Você está linda com este vestido". Talvez o namorado tenha tido a sorte de reparar nos cabelos cuidadosamente presos dela, na sandália nova e no decote elegante.

Vê-la deitada com o terço entre os dedos foi uma experiência infinita. Não pareciam os olhos dela, nem seu rosto, nem sua sobrancelha recortada. A recomposição da testa e dos lábios destacou a perícia dos médicos que tiveram a sorte de cuidar dela nos últimos instantes. Mas não é o que mais se deseja na vida: ver seus entes queridos reconstituídos.

Não a toquei. Apenas disse ali umas palavras, que sei que ela ouviu, mesmo de olhos fechados. Ao menos me aliviava a certeza de que a alma não tem limites. E como se não bastasse vê-la de braços cruzados e sem sorrir, nos despedimos dela enquanto a urna fechada a prendia a um descanso escuro. Ainda bem que existe alma.

Ao pé das pessoas, a placa de mármore da outra tia que voou jovem, há menos de um ano, em condições semelhantes. Agora são duas. Ao menos podem estar juntas, recompondo a família em outro lugar.

As pessoas dizem tantas coisas. Da luz dela, da coragem, do colosso, do sofrimento. Ao namorado, eu disse que não poderia restar dúvida. Há alguns anos, ele deixou esposa e filhos para viver um amor assim. E viveram. Enquanto ele reclamava do pouco tempo passado juntos, eu tinha apenas um comentário: "Ainda bem que deu tempo".

Ao anoitecer, a despeito da ausência dela, tive de visitar o quarto. A sobrinha querida, conhecida como "bonequinha" mesmo durante o enterro, precisava ajudar a fazer inventário, reler correspondências, levar uma lembrança. Nas estantes de livros, velhas conhecidas, Pimpinela Escarlate, em excelente estado, empilhado entre os outros tantos que li na adolescência. Os livros que eu dei, inclusive meus, em que reli as dedicatórias. Deveriam ter sido mais extensas, mas eram suficientemente carinhosas. Os livros de engenharia, nos quais ela aprendeu a construir estruturas. Os livros religiosos. Os CDs de música. A extrema organização dela para guardar tudo, até mesmo o estoque de barrinhas de cereais.

O guarda-roupa em degradê. O vestido preto que lhe caiu tão bem naquela última festa. Lavado, pendurado no cabide. As sandálias dentro das caixas. A coleção de blusas de linha coloridas. Os vestidos novos para o recém-alcançado manequim 42. A coleção de prendedores de cabelo. O cheiro inexplicável que o quarto de cada pessoa tem, como se cada um de nós fosse um perfume. O que levar dali? Qualquer item poderia desequilibrar a ordem das coisas. Puxei de lá um suporte de recados, onde eu simularei um bilhete de despedida.

Embora ela amasse gatos, deixei todas as pelúcias lá, aninhadas. Embora ela estivesse sempre de dieta, mantive os estoques de biscoitos integrais. Penso que os livros técnicos deveriam ser doados, para que os comentários dela, em linda letra, à margem dos textos, ajudem a formar outros engenheiros. Os livros da minha adolescência seriam bem-vindos em partes de minha estante que reservarei só para ela. Mesmo à custa de desalojar outros volumes. E quanto à presença dela, parece ter, ainda bem, contaminado esta casa, este bairro, estas ruas. Não há um lugar sequer da casa dos meus avós que não sugira uma risada dela ou um daqueles famosos ataques de fúria. E não há modo de esquecer nosso encontro pelos corredores da escola (onde nós duas já demos aula. Naquele dia, reparei-lhe o colar) ou meu primeiro passeio pela Praça da Liberdade.

Não há tempo suficiente para amar as pessoas. Não há jeito satisfatório de fazê-las saber disso. Não há modos eficazes de fazer planejamentos. Quando alguém voa, para sempre, é melhor confiar que nada se adiantou ou atrasou, que nada deixou de ser ou foi demais. As simulações do "e se" só são boas nos computadores. Aos humanos, trazem sofrimento e respostas impossíveis. As redes que a gente teceu são irreversíveis, mesmo quando um tecelão tira uma sonequinha mais profunda.

Nota do Editor
Leia também "A Mário de Andrade ausente".

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 17/10/2008

 

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