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Segunda-feira, 27/10/2008 Cócegas na língua Pilar Fazito ou Colonizou, agora agüenta As pessoas gostam de um apocalipse para agitar as coisas. O das últimas semanas vem sendo o sobe-e-desce astronômico das bolsas em todo o mundo. Só mesmo uma ameaça de catástrofe econômica hollywoodiana poderia ofuscar um pouco o pânico anterior: a reclamação geral inspirada pela nova reforma ortográfica. Há quem diga que já não conseguia decorar as regras antigas e agora, ai-meu-deus, vem mais por aí. Outros acreditam que isso seja uma conspiração dos donos de editoras e cursinhos preparatórios só para poder tirar todos os livros didáticos e apostilas de concurso público de circulação e vender os novos, claro, por um preço maior. Reclamação. Por todo lado, como diria o Raulzito, "todo mundo tem que reclamar": de professores a revisores, vestibulandos, candidatos a concursos públicos e, pasmem, até mesmo alunos que sempre protestaram por uma simplificação lingüística e não se cansam de culpar a língua portuguesa por todo o seu fracasso existencial. De vez em sempre, as reformas ortográficas dão sinal de vida. Foi assim que nossa pharmácia virou farmácia, só para citar um exemplo extremo. A cada reforma, também caem alguns acentos diferenciais, como aquele que existia entre êle e ele. De todo modo, não há motivo para tanto auê. A reforma continua sendo ortográfica e isso representa apenas um leve arranhão no verniz vernacular. O acordo levou muito tempo para sair e, pelo menos por cinco anos, ouvi alunos, professores, escritores e diretores de faculdade baterem pé em relação ao trema. Ora dizendo que o trema tinha caído, ora dizendo que não. Nessas horas, um lingüista tem que bancar o médico e dizer que a previsão era a sua morte, mas que o defunto ainda respirava e não era possível adiantar o enterro. Vou sentir falta do trema. Nunca fez mal a ninguém e chega a ser até engraçadinho, com aqueles olhinhos assustados. O "u" nunca mais será o mesmo sem o trema. Nem os teclados de computador. Mas o trema já era. A sonora regrinha do credelevê também já era e ninguém mais precisará acentuar quando eles creem, deem, leem ou veem. O voo do pássaro também ficou mais leve, assim como as ideias e as jiboias, que não serão propriamente um problema para os mineiros, já que por aqui os sons são naturalmente mais abertos. Os paulistas, por outro lado, vão ficar tentados a fechar o som dessas vogais e, mesmo que não confessem, mentalmente vão ouvir uma voz inconformada dizer "idêias", "jibôias". Enfim, a consoante muda caiu. Para a gente, isso não significa muito, já que a abolimos por nossa conta há mais tempo. Mas os portugueses ainda vão ter problemas com o seu óptimo e o acto. De todas as alterações da reforma, entretanto, a única que realmente pisou na bola foi a manutenção do hífen. Esse sim sempre teve regras chatas e pouco claras. E se algumas palavras passarão a ser escritas sem ele, como é o caso de antissemita e contrarregra, outras passarão a adotá-lo, como super-revista, hiper-resistente. Se lingüistas e revisores brasileiros fossem consultados, certamente dariam mil tremas em troca da extinção do hífen. Com hífen ou sem hífen, o brasileiro continua falando um português esquisitão, que só existe aqui. Essa língua própria, quase um português luso que passou por uma fagocitose, tem sido chamada de português brasileiro ou, simplesmente, brasileiro. Decerto, não é a língua que as mães portuguesas querem para os seus filhos, mas é a que vem sendo procurada cada vez mais por estrangeiros interessados em aprender o português. E aí vem a vingança do colonizado: atualmente, o maior número de falantes do português no mundo está no Brasil, justamente a ex-colônia em que a língua lusa mais sofreu "contaminação" de dialetos indígenas e africanos. Desde a morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, em 1578, Portugal já não é mais o mesmo. Ao longo de mais de 400 anos de espera do messias, o que os portugueses viram foi o esmorecimento das grandes navegações; a submissão ao reino espanhol e, posteriormente, aos ingleses; a perda das colônias; e uma decadência financeira que dá a Portugal, atualmente, o título de país mais pobre da União Européia. A perplexidade lusa com a perda do prestígio foi muito bem descrita nos poemas de Fernando Pessoa que compõem A mensagem. Em vez de se deixar levar pelo deslumbramento ou pelo sentimentalismo, como faz Camões nos versos de Os Lusíadas, Pessoa tem uma análise mais equilibrada e distanciada. Por vezes, até salta uma ironiazinha dos versos do gajo, o que torna ainda mais deliciosas as metáforas sobre uma nação com a cabeça apontada para o mar. Hoje, Portugal é um desses países cujo desenvolvimento depende do dinheiro enviado por patriotas expatriados. Para ser mais específica: mais de um terço dos portugueses vivem fora de Portugal. E os que vivem lá observam uma colonização às avessas, já que há mais de uma década os brasileiros vêm descobrindo a terrinha dos Manoéis, Miguéis e Joaquins. Dentistas, mulheres, cachaça e novelas made in terra brasilis ainda são os artigos de exportação que causam o maior frisson entre os nossos irmãos lusófonos. Talvez o que mais doa no ego histórico de um lusíada não seja a pobreza atual de uma nação que já teve seus momentos de glória, nem ter que aturar a contra-colonização brasileira contemporânea. Talvez o pior mesmo seja ter que admitir que o resultado disso que se vê hoje é fruto de suas próprias conquistas. Admitir que o trabalho jesuíta e a coerção religiosa imprimida pela Inquisição só fizeram proliferar um sincretismo brasileiro em que as cerimônias e os templos proliferam sem controle e passaram a ter um papel visual muito mais importante do que espiritual. Ou admitir que a insistência na difusão da língua portuguesa daria nisso: o desenvolvimento de um caldeirão de expressões, significados, formas, sotaques, usos, enfim, praticamente uma subversão lingüística natural e incontrolável. Tsk... Isso que dá enxertar flor de Lácio em planta carnívora. E pensar que tudo começou por causa de um pau e de açúcar... Pilar Fazito |
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