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Quinta-feira, 6/11/2008
Oficina literária com Michel Laub
Débora Costa e Silva

Foi por e-mail que começamos a ter aulas com Michel Laub. Uma semana antes de dar início à sua oficina de criação literária na Academia Internacional de Cinema, ele mandou uma mensagem para os alunos pedindo que escolhessem algum colega da sala e escrevessem um texto apresentando essa pessoa. Pareceu fácil, ainda mais para uma turma de 20 pessoas que se integrou rápido, freqüentava o bar depois da aula e trocava e-mails constantemente. O exercício foi tido por quase todos como uma brincadeira e uma forma de homenagear algum dos amigos ― mal sabíamos o que nos aguardava.

Imagine todas essas pessoas que gostam de escrever (seja conto, crônica, piada ou poesia), pós-oficina do Marcelino Freire (que, apesar de muito cortar os textos e alertar todos sobre vícios e clichês, acabou fazendo a maioria se desprender da timidez e de alguns pudores com exercícios divertidos, como o de produzir um conto erótico), já mais à vontade para ler textos uns na frente dos outros, prontas para soltar o verbo se deparando com um sujeito sério, de fala miúda e olhar intimidante.

Pois é, o impacto com a presença em sala de Michel Laub. "Não vim aqui elogiar texto de ninguém, deixo isso para os amigos e parentes", bombardeou de início. Alguns preferiram guardar a cartinha que escreveram sobre o colega para mais tarde, enquanto outros mais corajosos resolveram encarar de frente o leão que estava prestes a nos devorar a partir da primeira vírgula errada.

Foi uma aula difícil para todos nós. As críticas foram duras, cruéis de se ouvir. O leão não foi nada sorrateiro, atacou e tirou pedaço, sim, que eu sei de muita gente que voltou para casa aquele dia com pelo menos alguma lasquinha a menos. Mas acredito que uma das grandes funções de um curso de criação literária é essa: destruir, para depois reconstruir diferente, renovado, consciente. Mais do que aprender a escrever, ler e perder a vergonha de mostrar seus textinhos, estar exposto em uma oficina dessas serve principalmente para aprender (ou pelo menos tentar) a receber críticas e a digeri-las. E foi isso (e mais um tanto de outras coisas) que Michel Laub nos ensinou.

Exercícios
Ainda atordoados com o bombardeio, recebemos de Laub um texto de Rubem Fonseca, Os músicos. Por ser curto (e muito bom), o professor nos passou a "missão impossível": cortar o texto e reescreve-lo. Mas o que cortar naquele texto? Qualquer detalhe a menos tirava a riqueza da descrição do ambiente que o autor propunha e o conto parecia perder o sentido. Foi para percebermos a importância da ambientação de uma história que ele nos deu essa tarefa. Como lição de casa, escrever um conto, com o enredo que fosse, mas que trouxesse pelas palavras a descrição de um cenário, instaurando um clima e trazendo à tona as sensações que quiséssemos despertar no leitor.

Na aula seguinte, entre receosos e coléricos, os que se encorajaram a comparecer e a levar seus textos, tiveram uma nova impressão. A experiência ainda foi dolorosa, afinal, Laub não poupou suas críticas. Só que, diferente da primeira vez, a proposta foi levada mais a sério pelos alunos, que estavam com mais garra, pois foram armados para o combate de metáforas e crases. Ele analisava os contos sempre de duas óticas: linguagem e narrativa. Dessa forma detalhada e organizada de se avaliar os escritos ― que a primeira impressão nebulosa da primeira aula não nos deixou perceber de início ―, nós, alunos da oficina, pudemos ver que, quando era o caso, ele também sabia reconhecer um texto bem escrito ou uma história interessante.

Com um clima mais ameno, as aulas que se seguiram fluíram melhor e os exercícios começaram a se encaixar e se completar. Após escrevermos focando a ambientação, o segundo exercício chamava a atenção para o tempo narrativo de um conto. Com trechos de textos de Philip Roth (O teatro de Sabath) e Gabriel García Márquez (Cem anos de solidão), Laub deu eexemplos de quando um escritor quer retardar o tempo de uma narrativa. Este recurso pode transformar, por exemplo, uma ação que dura um minuto em 60 páginas. Com um trecho do livro Até o dia em que o cão morreu, de Daniel Galera, o professor mostrou o efeito inverso: passagem de tempo acelerada, quando se conta, por exemplo, em uma linha, algo que demorou anos para acontecer.

Nas outras aulas, Laub trabalhou com os alunos da oficina as diferentes possibilidades que temos ao utilizar o narrador em primeira ou terceira pessoa. "Em primeira pessoa, podemos trabalhar com a ambigüidade e deixar que o leitor descubra o que realmente acontece na história", disse. Ele dividiu os tipos de narração em primeira pessoa em quatro: culto, inculto, literária e oral. A primeira pessoa culta é aquela cuja presença no texto, por meio das ações e da linguagem, revela um conhecimento geral da narrativa (Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis, por exemplo). Já a inculta vai descobrindo o que se passa e o que está por vir ao longo do desenvolvimento do texto (um exemplo é Nick Carraway em O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald). A primeira pessoa oral é aquela cuja presença na narrativa é objetiva, com ações diretas e não-reflexivas e com uma linguagem mais simples, seca e precisa (como Frederic Henry, de Adeus às armas, de Ernest Hemingway). Por fim, a literária é aquela que, pelo uso de metáforas, metonímias e construção de imagens, torna-se auto-reflexiva (como o médico, de Os cus de Judas, de António Lobo Antunes).

Quando apresentou as variações de uma narrativa em terceira pessoa, Laub também dividiu em algumas categorias as possibilidades que o escritor tem neste caso. Algumas são mais próximas do cinema (narrador-câmera), por descreverem sobre uma cena ou história como uma câmera que passa pelo lugar e apenas expõe o que existe lá. Esse tipo de narrativa está no extremo da classificação feita por ele, em que mede o grau de intromissão que o narrador tem na história. No outro extremo, Laub coloca o narrador intruso, que praticamente conversa com o leitor de tanto que chama sua atenção para o que está narrando. Existe também o narrador onisciente, que expõe todos os "lados" de uma mesma história: ele sabe de tudo, sob a ótica de todos os personagens e conta tudo ao leitor. Há ainda o narrador onisciente seletivo, que escolhe para narrar apenas um ponto de vista de uma história. Por fim, existe o narrador neutro, que faz algo próximo ao do narrador-câmera, mas ainda consegue imprimir um pouco de ação e descrição, que é totalmente inexistente no outro.

Leitura
Já mais habituados e lidando melhor com a crítica, nos deparamos com outro problema, muito comum e recorrente, inclusive, ao longo da oficina: os alunos quase não liam os textos dos colegas. Assim como nas outras aulas com Márcia Tiburi, Rodrigo Petrônio e Marcelino Freire, na oficina de Laub o procedimento era o mesmo: ele pedia que enviássemos o texto do exercício por e-mail com certa antecedência para todos; assim, no dia da aula, todos os alunos poderiam opinar sobre os textos dos outros. Para Michel Laub, o exercício da escrita é tão importante quanto o da leitura, e sem exercemos o hábito de ler com um olhar mais crítico, a evolução do nosso próprio texto fica defasada. Mas essa era uma situação rara, quase ninguém estava conseguindo se organizar para ler toda a produção da oficina e opinar junto com o Laub.

Então, ele propôs que, para a última aula, nos organizássemos para que cada um lesse pelo menos um conto de algum colega e seguíssemos um guia preparado por ele para dissecar o texto. Divididas em dois tópicos (linguagem e narrativa), as perguntas e observações que deveriam ser feitas ao ler o conto eram sobre a clareza da história, além de notar se havia ambigüidades (e se eram ou não propositais), clichês e frases enfeitadas que poderiam ser reduzidas. O guia também nos dizia para prestar a atenção se o tom da narrativa (sério, irônico, formal) condizia com a história, se a escolha do ponto de vista (primeira ou terceira pessoa), dos diálogos, descrições etc. eram adequadas, se havia verossimilhança nos personagens, entre outras coisas.

Na oficina de Michel Laub, cavamos fundo nos textos, discutimos palavra por palavra sua função e importância no contexto. Destruímos para poder reconstruir. Foi graças à sua forma metódica e detalhista de analisar os trabalhos que pudemos pensar com mais cautela no que escrevemos e nos questionar sempre: o que quero dizer com este conto? O susto que nos deu no começo foi essencial para podermos levar mais a sério nossa produção e encarar a crítica como meta e desafio a superar. No final da oficina, Laub extrapolou o óbvio e nos fez exercitar também nosso lado crítico. Colocamos em prática e vimos a eficácia da velha idéia de que, para se escrever bem, é preciso ler bem. Às vezes só é possível olhar diferente para o que fazemos depois de sermos orientados a olhar diferente para o que vem de fora.

Para ir além
Academia Internacional de Cinema

Débora Costa e Silva
São Paulo, 6/11/2008

 

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