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Quinta-feira, 13/11/2008
Ideia acordou sem acento!
Marcelo Spalding

Hoje acordei sem idéia. Tudo bem, ideia acordou sem acento. E esqueceram de avisar ao Word, que acentuou ideia sem eu pedir! Bem, não vai ser fácil, mas esta será minha primeira crônica sob a égide da nova reforma ortográfica. Não vai ser nem um pouco fácil, afinal, nunca passei por uma reforma antes. Desde que aprendi a ler e escrever, ideia tem acento... Mas seria bem mais difícil se eu fosse português. Ah, de facto seria.

Primeiro, é preciso lembrar que a intenção da reforma é mais política e econômica do que lingüística. Embora não elimine de todo as diferenças ortográficas nem pretenda interferir nas culturais, a reforma ortográfica unifica a ortografia oficial do português, única língua importante com duas ortografias oficiais distintas, e por este motivo tem sido chamado de Acordo e não de Reforma. Não deixa de ser reforma, é claro. Mas com olhos mais voltados aos contratos internacionais que, quando redigidos em português, precisavam de duas versões; ao mercado de livros, que se via obrigado a fazer edição especial para além-mar; ou ao continente africano e suas potencialidades político-econômicas do que às reformas que cotidianamente se faz na língua.

Por exemplo: para para pensar. Agora não tem mais acento no "pára", então fica assim mesmo: para para pensar. Talvez essa falta de acento nos faça tropeçar na frase, e aí eu escreveria, como falo, "para pra pensar" e não "para para pensar", o que pode acarretar que daqui a uns cinqüenta anos a preposição para vire definitivamente pra, a fim de diferenciar-se do outro para. Mas agora, pelo menos, qualquer texto em norma culta escrito em Porto, Lisboa, Luanda, Maputo ou Rio de Janeiro terá essa forma: para para pensar.

Claro que a reforma, ou acordo, traz consigo enorme polêmica. Para alguns, a mudança é desnecessária, dispendiosa, coisa de partido de esquerda quando chega ao poder. Para outros, é tímida demais, deveria começar eliminando os hífens e, quem sabe, depois os acentos todos. Particularmente, acho que o grande problema é que a mudança nos faz perceber como o tempo está passando e como precisamos mudar, nos atualizar. Mudar não só o acento da ideia como também as próprias ideias...

Porque mudar o dicionário é como mudar a posição solar, a divisão dos países, a cor da bandeira: desde que nascemos ideia é idéia e, de uma hora para outra, não é mais. E por que não é mais? Pelo mesmo motivo que um dia fora. Esse tipo de mudança numa instituição forte como a ortografia nos faz perceber, portanto, como também nossa língua é fruto de construções, construções que com o tempo se perdem e por isso passamos a tomar as palavras por códigos arbitrários. Mas observe, por exemplo, a palavra discar: daqui a cinco gerações continuarão usando discar com o sentido de telefonar, mas poucos lembrarão que, um dia, os telefones tinham um disco e para se falar com alguém era preciso discar... Outra palavra, para ficar nas afetadas pela reforma: mandachuva. Não tem mais hífen, porque ninguém mais lembra por que se uniu, um dia, "manda" e "chuva" para designar alguém mandão. Ninguém lembra, nem eu, mas alguma razão há de existir.

No frigir dos ovos, tenha a palavra "linguística" trema ou não, as pessoas continuarão tendo dificuldades para lidar com as regras de acentuação ou com a confusa conjugação dos nossos verbos, com as palavras em inglês ― e, agora, em chinês ―, continuarão tomando conta dos dicionários e homogeneizando as línguas e culturas como um todo e, pior ainda, as pessoas continuarão escrevendo pouco, muito pouco. Com ou sem acento, com ou sem hífen.

Para nós, que saímos da escola quando Plutão ainda era um planeta, evidentemente que adaptar-se à mudança será uma epopéia: teremos de desautomatizar a colocação dos acentos e do trema, comprar dicionários novos, mudar o corretor ortográfico do computador. Ou não, porque assim como nos anos setenta uma parcela da população manteve-se conservadora e insistindo no pôrto ou no cafézinho, é possível que muitos se neguem a adquirir novos hábitos e insistam a escrever como aprenderam na escola.

Mas, no final das contas, fique tranquilo, tudo continuará como antes. As assembleias europeias continuarão protecionistas, confusas e poderosas. As mulheres seguirão nuas em pelo nas esquinas das cidades. Grupos antissemitas continuarão existindo, e também grupos antirreligiosos. A Coreia do Norte continuará antipática à Coreia do Sul. Delinquentes continuarão fazendo sequestros relâmpagos. Voos heroicos continuarão matando inocentes sob o aplauso de uma plateia patética diante da televisão. Pseudointelectuais continuarão dizendo que leem poetas neossimbolistas, romances neorrealistas. E eu continuarei não gostando de pera nem de geleia nem de tramoia nem de feiura.

Agora, para terminar esta primeira e trabalhosa crônica sob a égide da nova reforma ortográfica, quero reproduzir, devidamente vertida para o Novo Português, um trecho de "Por que Faraco é a favor da mudança ortográfica", primeira coluna que escrevi sobre este tema, em novembro de 2007:

"Faraco considera a rejeição à mudança ortográfica proposta apenas um sinal claro de que os falantes de uma língua rejeitam mudanças recentes em sua língua, especialmente se elas mexem na língua culta, onde há forte monitoramento social, mesmo quando elas já são usuárias da mudança. Por isso os mesmos que em casa falam 'a cidade que nasci' ou 'vamos se respeitar' na escola dirão, aos berros, que o correto é 'a cidade em que nasci' ou 'vamos nos respeitar' (isso quando não se hipercorrigirem e inventarem 'vamos nos respeitarmos').

Na base de tudo isso, segundo o gramático, está a vergonha que o brasileiro tem da própria língua e o fato de que 'nossa sociedade é intolerante e preconceituosa, não admite a diversidade'. Mas aí seria tema pra outra coluna, outra palestra e outra polêmica. Por ora, nos interessa apenas lembrar ainda que os países de língua portuguesa que motivam essa disputa 'ortografopolítica', especialmente Angola e Moçambique, libertaram-se de Portugal apenas em 1975, depois de sangrentas guerras coloniais, e só no século XXI conseguiram erradicar as guerras civis patrocinadas em seus territórios por comunistas e liberais, emergindo agora de uma situação de profunda pobreza e despertando o interesse comercial das nações em desenvolvimento. Afinal, trata-se de uma população de 20 milhões de pessoas em Moçambique e 12 milhões em Angola, ambas mais populosas, apesar de tantas mortes e guerras, do que a população de Portugal."

Marcelo Spalding
Porto Alegre, 13/11/2008

 

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