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Sexta-feira, 2/11/2001
Só existe um Deus, e Bach é seu único profeta
Rafael Azevedo

Daniela Mountian

Noite quente, igreja cheia. O Mosteiro de São Bento resplandece, numa beleza que não julgava que ele possuísse, tanto em seu exterior quase gótico quanto em seu interior sub-bizantino. De um púlpito improvisado, Amaral Vieira, um dos maiores compositores nacionais contemporâneos e coordenador artístico do festival, dá as boas-vindas a seu público, e irrompe num longo discurso de agradecimentos. O sr. John Rose, organista do Trinity College, de Connecticut aproxima-se, em determinado ponto, para receber uma placa comemorativa; suas feições não negam sua origem. Rapidamente ele se dirige ao órgão, ato que é narrado passo a passo por Amaral Vieira; que logo anuncia o que está por vir, a primeira audição no Brasil do Prelude and Trumpetings de Myron Roberts, compositor americano vivo. Luto contra o tédio e sono; o sublime som do órgão Walcker do Mosteiro parece feio, maltratado pelos agudos exageradamente compridos e as explosões graves da partitura de Mr Roberts... não conhecia a composição, mas a impressão que tínhamos é que o sr. Rose estava errando na execução; mas acho mais provável que a intenção original da composição fosse soar daquele jeito. Aplausos burocráticos no final. É interessante notar, nesse ponto, uma peculiaridade do público brasileiro; aliam a reverência quase religiosa aos compositores "de renome", consagrados, com o desprezo mais hediondo por qualquer coisa que possa ser descrita como moderna. Assim, enquanto temos durante a execução de um Bach, Beethoven, Brahms ou Mozart, ou mesmo Prokofiev, Rachmaninov e Stravinsky (incompreensíveis pra grande maioria das pessoas) um silêncio reverencial, ou no máximo um frisson hipócrita antes do início da peça, quando nos deparamos com qualquer coisa no programa que o público julgue indigno de sua atenção, é-se obrigado a aguentar pessoas conversando por baixo do som do órgão (eles adoram em especial as horas em que o som do órgão toma conta do ambiente, "explodindo", efeito que compositores mais recentes parecem adorar — chegam a gritar nessas partes, como uma senhora que conversava com seus filhos), uma miríade de sacos plásticos sendo mexidos e remexidos (que tipo de pessoa leva sacos plásticos num concerto, e ainda mais num concerto de órgão?!), molhos de chaves sendo retirados e colocados nos bolsos, além do inevitável celular que ecoa pela igreja, apesar dos incansáveis avisos de Amaral Vieira em seu discurso inicial.
Mais Bach me faz esquecer de tudo isso. Começa seu Prelúdio e Fuga em lá menor (BWV 543), mais uma jóia das muitas que ele compôs para o que Mozart chamava de "o rei dos instrumentos". Realmente, o som que dele sai talvez seja o mais próximo de celestial - independendo da qualidade do executor — e sua execução é sem dúvida a que exige mais de um músico. Ver alguém tocar Bach no órgão é uma experiência em si, é admirável a destreza que a pessoa tem que ter para realizar frases intrincadas e complexas de baixo com os dois pés enquanto mantém uma melodia e seu contraponto com as mãos. O sr. Rose não estava, talvez, numa de suas melhores noites — os agudos estavam muito baixos, e a velocidade ora lenta demais, ora exageradamente rápida, com que ele tocava parecia-me inadequada. Mas ainda assim Bach é Bach, e foi sem dúvida nenhuma o ponto alto do concerto. Até os indivíduos que estavam atrás de mim, que pelo comportamento, idade e vestimentas estavam mais para um show de rock que um festival de órgão no Mosteiro de São Bento, pareciam em êxtase antes do início de sua execução: "agora sim começa a música!", "nossa!", "uau!", ao ouvirem uma das muitas partes virtuosas do concerto. Senti-me vendo um show dum Yngwie Malmsteen, ou Steve Vai, tamanha a comoção que uma frase tocada com velocidade causava neles. Alguém deveria dizer-lhes que música não é isso. Não é competição de velocidade, não é demonstração de virtuosismo. Qualquer guitarristinha do G.I.T. consegue tocar um lick muito mais rápido do que o sr. Rose executava aquelas escalas da obra de Bach. Mas Bach não é isso, vai muito além disso; louvar isso nas obras de Bach é cometer o mesmo erro de julgamento que os contemporâneos de Bach cometeram, ao admirarem-no mais como virtuose que como compositor. O que Bach deixou como legado não é a velocidade de seu fraseado, mas sim o que nele está contido; a elaboração e complexidade de suas melodias, a riqueza de suas harmonias, a capacidade arquitetônica de sua obra. Bach construiu ali mesmo, no vão da nave do Mosteiro, uma catedral sonora, mais bela e mais sublime que tudo que vi e ouvi naquela noite. Ele fez tudo ter sentido; em suma, senti a presença de Deus. E isso não é pouco para um agnóstico.
De volta ao mundo mundano, os aplausos despertam-me para a consciência de minha existência terrena. Nada mais adequado então que o belga César Franck, típico representante do Romantismo do fim do século XIX; melodias tristes, belas e arrastadas, como uma daquelas belas burguesas de chapéu, empertigadas, metidas num espartilho apertado sob um vestido cheio de rendas e detalhes, caminhando longamente por um trottoir com seu poodle a tira-colo. Acho bonito, mas sempre fico com um gostinho de que já datou, como quando ouço sua sonata para violino e piano, que muitos julgam ter inspirado a sonata de Vinteuil, no Em Busca do Tempo Perdido. Na sequência, algo que há muito esperava ouvir ao vivo: a Toccata opus 208, de Amaral Vieira, composta em 1986 e que há vários anos me acompanha, no CD e no coração. É uma obra importantíssima, dotada de uma beleza que não julgava mais possível nos compositores de nossos tempos, além de um formato um tanto tradicional, conservador, se é que posso assim dizer. Há nela no entanto um inegável frescor, uma brisa ali de algo novo contida pela moldura antiquada de sua estrutura. Os melhores compositores, os melhores artistas são assim, conseguem se superar diante das dificuldades oferecidas pela disciplina e pela austeridade do formato a que ele é obrigado a se submeter. É por isso que até hoje não aceito muito bem coisas como o verso livre ou "instalações".
Mas o sr. Rose desta vez desapontou; sua execução da Toccata deixou muito, mas muito a desejar. Começou lento demais, afundando o andamento inicial, que é alegre e "pra cima", upbeat, passando uma sensação de exaltação, de regozijo; em vez disso, reinava o desânimo. No adagio do meio, aconteceu o contrário; o sr. Rose atropelou com fúria a melodia linda que começava, passando por ela como um caminhão desgovernado. Esta melodia, que sempre me leva às lágrimas na versão que tenho em CD, mal pôde ser ouvida por quem estava lá; logo já havia terminado, dando lugar ao último andamento, mais acelerado, onde finalmente Mr Rose conseguiu acertar. Mas já era tarde demais. Perdi a empolgação com as obras que se seguiram, pois, por não as conhecer, não saberia dizer se o organista estava executando-as a contento. De todo jeito, não gostei do que ouvi. Eram mais trechos de obras de compositores europeus do fim do século XIX-início do XX; de Josef Gabriel Rheinberger, de Liechtenstein (grande homenageado nesta edição do Festival, todos os músicos executarão alguma obra dele) a Fuga de sua Sonata n.3 op.88, e do francês Louis Vierne o Adagio e o Final da Sinfonia n.3 opus 28. Vale como menção honrosa este Final da última obra, que sobressaiu-se sobremaneira do resto.
No final, apesar dos pesares, a impressão que saí foi muito boa; é sempre bom poder ouvir compositores que mantenham nossa esperança na sobrevivência da música erudita, como Amaral Vieira, e melhor ainda poder ouvir Bach. Haverão ainda seis concertos, todas as terças-feiras. Os organistas, todos americanos, já que a edição deste ano foi batizada pelo nome auto-explicativo de "Festival Norte-Americano". Nestes tristes tempos em que padres gravam discos, realizam serviços acompanhados pelo som de um violão e rezam missas não mais no latim da Vulgata e sim num português dos mais vulgares, é reconfortante saber que ainda se pode entrar numa igreja e entrar em comunhão com Deus, mesmo que seja pelo órgão celestial de um músico talentoso e pelas notas etéreas e eternas de Bach, em vez da ladainha lenta e desconjuntada de um desses padrecos de passeata.

Rafael Azevedo
São Paulo, 2/11/2001

 

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