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Terça-feira, 18/11/2008 Necrófilos da vanguarda roqueira Diogo Salles No rock, existem bandas que sabem respeitar sua própria história; outras, não. Simples assim. Nesse início de século XXI, diante da indigência do rock atual e da ausência de renovação no gênero, escrevi aqui ― em tom de regozijo, confesso ― que os dinossauros voltaram da pré-história para ocupar o vazio que indiegentes e emorróidas não conseguiram preencher. Porém, cometi um grande erro ao omitir que essa vanguarda roqueira também tem o seu lado infame. E alguns beiram o grotesco, violando túmulos de roqueiros imortais. O bom senso diz que é preciso ter muito cuidado ao mexer na história de uma banda, principalmente se ela for um ícone de uma era. Mas, à revelia de tudo isso, algumas bandas preferiram ignorar todas as profecias dos deuses do rock e jogar suas biografias na lata do lixo. Não falo aqui de reuniões "caça-níqueis", como muitos acusam, até porque acredito que esse termo é usado de forma equivocada. Genesis e The Police, por exemplo, se reuniram em turnês muito bem-sucedidas e brindaram seus fãs porque era exatamente essa a proposta. Além das reuniões terem sido com os integrantes originais (ou remanescentes), era apenas uma turnê. E só. Alguns artistas são ainda mais cautelosos na hora de revirar seu baú, como foi o caso do Led Zeppelin, que se reuniu para uma única apresentação, no final de 2007. O show aguçou tanto o apetite dos fãs e dos promoters de shows que Robert Plant já não agüenta mais responder se fará ou não a turnê... Aliás, aproveito aqui o espaço para engrossar o coro. Mas ainda existem bandas que conseguem ressurgir das cinzas para compor material novo. Se os discos não soam brilhantes como antigamente ― até porque os tempos são outros ―, pelo menos, os músicos respeitaram suas biografias e não fizeram feio frente aos fãs e à crítica, caso recente de Whitesnake, Extreme e Asia. Melhor ainda são aquelas que nunca deixaram a peteca cair e, mesmo entre um ou outro disco irregular, ainda mostram grande capacidade para se reiventar e lançar ótimos trabalhos, como fizeram recentemente Rush e AC/DC. Ao longo dos anos as baixas em bandas de rock foram inevitáveis, dado o excesso de seus integrantes. Todas as perdas foram traumáticas, mas algumas são irreparáveis para a sonoridade da banda. O que seria, por exemplo, dos Stones sem Mick Jagger ou Keith Richards? Eles superaram muito bem a morte de Brian Jones e se viraram melhor ainda quando o baixista Bill Wyman decidiu deixar a banda, mas, sem Mick ou Keith, simplesmente não há Rolling Stones. No caso do Led Zeppelin, o vitimado foi o baterista John Bonhan. A despeito de sua genialidade, ele foi dignamente substituído pelo seu próprio filho, Jason. Aqui, além do gene do pai, existe um legado que foi respeitado. Além disso, um novo disco de estúdio nunca chegou a ser cogitado. Substituir bateristas e baixistas certamente é menos traumático em termos musicais. Mas a corrente vocalista-guitarrista, quando quebrada, causa uma seqüela irreversível ao som da banda e poucos (pouquíssimos, na verdade) foram bem-sucedidos ao correr esse risco. Com isso, as maiores vítimas foram mesmo as bandas que perderam seus vocalistas ao longo da jornada ― principalmente quando o vocalista era a alma da banda. Responda rápido: existe U2 sem Bono? Pois é, deve ter gente que acha isso possível, mas esquecem que, quando se perde a alma, qualquer tentativa de reencontrá-la será inócua. Olhando pelo lado dos músicos, chega a ser compreensível, já que os shows tributo não chegam a saciar o apetite de quem já se viu em grandes e longas turnês e conviveu com a fama. Porém, isso não serve como desculpa para que seus remanescentes manchem a história da banda e a memória de quem ajudou a construí-la. É o que aconteceu com o The Doors. Em 2001, ressurgiram sob o pretexto de fazer um tributo a Jim Morrison, com vários vocalistas convidados. Mas logo decidiriam remontar a banda tendo Ian Astbury (The Cult) nos vocais, que até se mostrou competente. Uma turnê bastava, mas o The Doors of the 21st Century ― que depois virou Riders on the Storm ― preferiu diluir Jim Morrison, se aventurando em turnês que, se deixar, podem ir até o século XXII. Pelo menos Ray Manzarek e Robby Krieger tiveram a sensibilidade de perceber que um novo disco de inéditas seria um completo desastre. Esse erro, eles já tinham cometido lá nos anos 1970, mas que, felizmente, não se repetiu nessa nova encarnação... Ainda. Algumas bandas conseguem fazer ainda pior, quando resolvem ser cover de si mesmas. Caso do Creedence Clearwater, que virou "Revisited", já que os únicos membros originais são o baixista e o baterista. Outro detalhe sórdido é que a "turnê" deles começou em 1995 e até hoje não acabou. Mas ninguém se expôs tanto ao ridículo quanto o INXS. Quando Michael Hutchence morreu enforcado em circunstâncias obscuras em 1997, a banda sinalizava que encerraria suas atividades, mas seguiu com vocalistas temporários. Até que, em 2004, eles atingiriam o pináculo da venalidade: encontrar um vocalista através do reality show Rock Star. Depois que este foi vencido por um certo J. D. Fortune, era evidente que o que viria depois seria sumariamente ignorado pela grande maioria dos fãs. Eis que o Queen anunciou sua volta com o vocalista Paul Rodgers (ex-Free e Bad Company) no lugar de Freddie Mercury. Estranho, para dizer o mínimo. John Deacon, o baixista, previu o pior e não embarcou nessa canoa, dizendo que uma reunião só funcionaria com George Michael nos vocais ― opinião compartilhada por boa parte dos fãs da banda. George Michael não é roqueiro e é muito inferior a Freddie Mercury em todos os aspectos, mas seu timbre vocal é o que mais se assemelha ao de Freddie. Sua interpretação para "Somebody to love" no famoso tributo de 1992 mostrou isso e, vendo a turnê atual, fica a impressão de que John Deacon talvez tivesse razão. Não que Paul Rodgers seja de todo ruim. No palco ele ainda mostra vitalidade do alto de seus quase sessenta anos e mostra reverência e humildade ao ocupar o lugar que já foi do maior front-man da história do rock. O problema maior é achar que essa história pode ser continuada. É achar que lançar um novo disco de inéditas e colocar o nome "Queen" na capa vai atrair os fãs como uma manada de búfalos. Essa excêntrica união de forças chamada Queen+Paul Rodgers errou logo na escolha do nome. E errou feio. Se eles se lançassem com um outro nome e um outro conceito que passasse ao largo de tudo o que remotamente lembrasse Queen, a recepção seria muito mais simpática. Mas como eles insistiram em misturar as estações e estão tocando músicas novas na atual turnê ― que passará por aqui na semana que vem (dias 26 e 27 em São Paulo e dia 29 no Rio) ―, o novo disco tinha a difícil (ou seria impossível?) missão de trazer um material à altura... Muito aquém de um Bad Queen O primeiro erro que se pode cometer ao ouvir The Cosmos Rocks é tentar compará-lo ao Queen original. Não é exatamente um exercício fácil, já que a estranha junção de dois estilos tão diferentes poderia parecer um "Bad Queen" à primeira vista. Mas vamos nos ater apenas ao Queen+Paul Rodgers, como eles preferiram chamar. Depois que me despi de todos os pré-conceitos, me preparei para a audição. O disco abre com "Cosmos rockin" e a realidade vem logo à tona... Mau presságio para uma banda com a petulância de ter "Queen" em seu nome. Meus ouvidos já acusavam um pastiche de Bad Company, mas ainda era cedo para julgar e fui em frente. "Still burnin" tenta manter uma pegada rock, mas "Small" mergulha num clima bucólico e introspectivo e dá mostras de que o pior ainda está por vir. Em "We believe", a mensagem pacifista é de uma rara ingenuidade e tenta (sem sucesso) se adequar aos tempos politicamente corretos de hoje. O resultado é uma caricatura tardia de "We are the world". Esse não é o único momento que beira o constrangedor. Em "Call me" o refrão chiclete ("Call me if need my love, baby") tem a profundidade de um pires e poderia ser dada para algum cantor cucaracha de reality show. E por falar em reality shows, "C-lebrity" entra no mundo das pseudocelebridades e faz uma crítica ao showbizz ― o problema é que esqueceram de fazer uma autocrítica antes. Para consumar a tragédia, fechamos com uma trinca de baladas patéticas: "Some things that glitter", "Through the night" e "Say it's not true"... De deixar ruborizado até Bryan Adams em seus pesadelos mais molhados. Nem mesmo Brian May foi capaz de se salvar do naufrágio. Guitarrista talentoso, ele até tem bons momentos ― como em "Surf's up... School's out" ― mas muito pouco para um músico de seu brilho. O resultado final é uma banda desfigurada e anacrônica, com tiozões tentando fazer um "hype", no melhor (ou pior) estilo papai-garotão. Quem diria... Minhas definições pré-conceituosas do início ficaram inverossímeis, pois se mostraram esperançosas demais. O que começou como "Bad Queen" e logo sinalizava para um Bad Company pasteurizado, mostrou, ao final, que The Cosmos Rocks é um disco solo de Paul Rodgers (fraco, por sinal) com uma banda de luxo apoiando-o. Caça-níqueis? Sim, aqui o termo se aplica. Freddie Mercury não merecia isso. E o pior é que ele não estava lá para evitar que seus ex-bandmates cometessem esse cósmico equívoco. Nota do Editor Leia também "O fundamentalismo headbanger". Diogo Salles |
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