busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Terça-feira, 25/11/2008
Da preguiça como método de trabalho
Rafael Rodrigues

Reedições de livros são importantíssimas porque dão aos leitores jovens a oportunidade de conhecerem obras antigas e há algum tempo fora de catálogo. Não tivesse a editora Record tomado a atitude de reeditar a obra de Charles Kiefer, por exemplo, muito provavelmente eu não teria lido dois livros seus no ano passado. Só "conheceria" o autor este ano, por ele ter sido patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, mas talvez não tivesse o mesmo interesse por seus livros ― e já teria "perdido" um ano.

Sem essas eventuais reedições, seria quase impossível um leitor de vinte e poucos anos se deparar com determinadas publicações em livrarias. Uma análise (minha, é claro) rápida, superficial e birrenta aponta que isso ocorre devido à publicação em excesso de livros de autores novos, aqueles com menos de trinta anos, dos quais apenas 20% merecem ser lidos ― e olhe lá...

Por isso são louváveis as iniciativas de reeditar obras de autores consolidados ― estejam eles vivos ou não ―, como vem acontecendo com Flávio Moreira da Costa e Caio Fernando Abreu (editora Agir), João Ubaldo Ribeiro e Carlos Heitor Cony (Alfaguara), Monteiro Lobato e Mario Quintana (editora Globo), entre outros.

Sem iniciativas assim, teríamos que ler, ainda no clima "obamístico", O Presidente Negro em edições antigas de folhas amareladas e empoeiradas (pessoas como eu precisam evitar ao máximo terem livros assim em mãos, por conta de problemas respiratórios). Pior ainda: correríamos o sério risco de jamais conhecermos livros como Da preguiça como método de trabalho (Globo, 2007, 357 págs.), de Mario Quintana. Sua primeira edição é de 1987 e seria difícil encontrá-lo em alguma livraria. Só em sebos, mas leitores com problemas respiratórios não costumam comprar em sebos. Eis que, vinte anos depois, em 2007, foi publicada a segunda edição do livro, justamente a que caiu em minhas mãos.

Reunião de textos publicados na coluna que Quintana mantinha no "Caderno H" do jornal Correio do Povo, Da preguiça como método de trabalho é um livro inclassificável, pois não se restringe a um só gênero. Nele podemos ler crônicas, aforismos, poemas, entrevistas e contos do autor gaúcho.

Mais conhecido por sua poesia ― alguns o chamam de "o poeta das coisas simples" ―, a impressão que se tem, ao ler este livro, é a de que ele foi também um homem simples. Na sua apresentação, texto publicado na revista IstoÉ em novembro de 1984 e também no livro em questão, ele diz "Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu.". Sua prosa e seus versos são, igualmente, simples, mas nem por isso superficiais ou banais. Em sua grande maioria bem-humorados, os textos reunidos em Da preguiça como método de trabalho são leitura divertida e emocionada: garantem gargalhadas, sorrisos melancólicos e momentos de reflexão.

Tudo é assunto para Mario Quintana. Alguns são mais presentes que outros, claro, como o cigarro, por exemplo. Fumante inveterado, Quintana faz elogios ao seu vício (mas só ao seu; ele não pede que ninguém o acompanhe): "Fumar é um jeito discreto de ir queimando as ilusões perdidas. Daí, esse ar aliviado e triste dos fumantes solitários. Vocês já não repararam que nenhum deles fuma sorrindo?". O ato de escrever e a condição do escritor também são temas constantes, como nos aforismos "O assunto": "E nunca perguntes o assunto de um poema. Um poema sempre fala de outras coisas..." e "A função": "A função do poeta não é explicar-se. A função do poeta é expressar-se.".

E se há uma característica em praticamente todas as páginas ― não confundir com "em todos os textos" ― do livro, é o bom humor. Como não rir de gracejos como "Os carecas": "Ser careca deveria arejar as idéias... Pelos menos, são os carecas que brilham mais."? Ou de minipoemas como "A bem-amada na praia": "Sua bundinha/ Deixou na areia/ A forma exata/ De um coração..."?

O que não impede de Mario Quintana abordar assuntos mais sérios e reflexivos, como o aborto: "O aborto não é, como dizem, um assassinato. É um roubo. Nem pode haver roubo maior. Porque, ao malogrado nasciturno, rouba-se-lhe este mundo, o céu, as estrelas, o universo, tudo! O aborto é o roubo infinito.". Ou de falar de livros e autores, como nos textos sobre Raul Bopp, Proust, Goethe ou seu grande amigo Erico Verissimo.

Mario nasceu em 1906 e faleceu em 1994, aos 88 anos. Tivesse ele nascido algumas décadas mais tarde, teria vivido o suficiente para chegar até os nossos dias, em que até uma planta tem um blog (fato que certamente ele não deixaria de comentar).

Com sua verve humorística e reflexiva; com seus textos que variam de aforismos de apenas uma linha e poemas curtos a crônicas e contos de todos os tamanhos possíveis, certamente Mario Quintana faria uma diferença enorme no meio jornalístico e blogueiro de hoje. Coitados dos blogueiros, se Quintana estivesse vivo e blogando. Coitados também dos autores jovens (que fique o exemplo de Mario, que publicou o primeiro livro só aos 34 anos). Muita gente por aí teria vergonha de escrever e publicar.

Polivalente, Mario Quintana fez de quase tudo: foi poeta, cronista, tradutor (traduziu Marcel Proust, Virginia Woolf, Guy de Maupassant, Somerset Maugham, entre outros) e jornalista. Apesar do título do livro, a preguiça definitivamente nunca tomou conta de Mario. Não por mais de alguns minutos. Talvez o título tenha sido uma brincadeira ou trocadilho do autor. Aliás, retiro o que disse. Não tentarei adivinhar o que Mario disse ou não. Acho que ele não iria gostar.

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 25/11/2008

 

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês