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Terça-feira, 2/12/2008 Solidariedade é ação social Diogo Salles O que é solidariedade? Todo mundo se considera solidário. Eu mesmo me considerava um, imagine você. O rótulo de povo "sorridente e hospitaleiro" parece mesmo vir colado em todos os brasileiros. Mas o que é solidariedade, afinal? Vejamos primeiro pela definição do dicionário: "reciprocidade de interesses e obrigações". Ih, agora complicou... Se temos nossos próprios interesses e sabemos de nossas obrigações ― embora deixemos de cumprir várias delas ―, todos os sorrisos e hospitalidades do mundo serão insuficientes para garantir a tal reciprocidade. Por isso, acho que vale a pena gastar mais algumas linhas para refletir sobre isso. Solidariedade é uma coisa árdua, plantada e regada todos os dias e que, até não muito tempo atrás, era tarefa de uns poucos abnegados. Sim, solidariedade é mudar a vida das pessoas, ainda que seja de um pequeno grupo. Mas ela se configura através de ações, e não de olhares condescendentes. Por exemplo, quem dá esmola no semáforo não é solidário (apenas acha que é). E quem entrega cestas básicas? Aí, sim, pode ser considerado solidário, mas o contexto pode ser ― e é ― muito maior do que isso. Não estou falando de capoeira, circo ou dança. Falo de educação, saúde, meio ambiente, cultura, inclusão digital. Para definirmos a questão: solidariedade é ação social. É um conceito diretamente ligado à cidadania e à democracia. Se a democracia convoca todos a participar, não há melhor maneira de exercer (e levar) cidadania do que uma ação social. Não é algo simples, que se resolve em um final de semana. É um processo demorado, no qual só enxergamos as transformações desejadas no futuro. Quando comecei a participar de ações sociais, descobri em mim mesmo um lado solidário que eu até então desconhecia. Meu próprio conceito de solidariedade expandiu, enxerguei muito além daquela acanhada tela de TV. Existe, claro, uma motivação por trás desse gesto. Para muita gente, a maior delas é a gratidão. É fazer parte de algo realmente importante para a sociedade. É saber que, para aquelas pessoas, ali, você fez toda a diferença. São motivações genuínas e compactuo de todas elas, mas não vou ficar aqui bancando a Madre Tereza. Entrei nessa porque me pareceu, na época, uma coisa relevante a se fazer. Eu quis estar lá, in loco, e ver a realidade, em vez de continuar apenas lendo sobre ela. Considerei que eu precisava retribuir de alguma forma toda a sorte que tive na vida. Depois da primeira ação, meus conceitos mudaram e a motivação principal, para mim, se tornou política. Se o voto nulo é inócuo como protesto, julguei que o trabalho social pode ser uma maneira metafórica de manifestar meu menosprezo pelo que os políticos fizeram da atividade política. Duvido que outras pessoas tenham essa mesma motivação, mas só o fato de existirem tantas instituições que recusam dinheiro de governos, já mostra a desconfiança para com o poder público. Tudo bem, um dia eu também já acreditei que o estado seria capaz de exercer esse papel. Esta tem sido uma percepção constante das pessoas em relação à política. Certa vez, nossa ação foi recebida de maneira nada amistosa: "Não sei que governo ou partido vocês representam, mas aqui as coisas são diferentes". Quando explicamos que não estávamos representando governo ou partido algum, os dedos em riste e as sobrancelhas arqueadas se transformaram em sorrisos calorosos e sucessivos pedidos de desculpas pelo mal-entendido. É assim que as pessoas reagem quando sentem o cheiro da politicagem no ar. Não as culpo. Ao contrário. Concordo. Aos poucos o brasileiro começa a perceber como a política se tornou uma mera disputa por poder, dinheiro e regalias que se concentram (e se revezam) na mão de uns poucos grupos políticos. Está cada vez mais difícil negar a falência das ideologias e o descrédito das instituições. Percebemos que não há salvadores da pátria nem balas de prata que nos salvarão com um único disparo. Acabou. Hoje, quem quer ver a mudança, sabe que precisa fazer parte dela, e não ficar sentado, de pijama, esperando a mamãe "estado" ou o papai "mercado" vir socorrer. Vejo muitos brasileiros se movimentando nessa direção, tomando suas próprias iniciativas. Uma espécie de plano de governo pessoal, se preferir. Não importa se ele vai ajudar dezenas, centenas ou milhares de pessoas. Ou uma só, que seja. Ele ajuda, doa um pouco de si. Roupas, comida... Na interminável discussão "dar o peixe ou ensinar a pescar", acredito que qualquer ajuda é bem vinda. A meu ver, qualquer assistencialismo é válido, desde que não venham de governos ― caso contrário, poderão ser cálculo político-eleitoral travestido de filantropia. Com essa explosão do terceiro setor observamos um grande crescimento do número de ONGs e OSCIPs no Brasil. Em 2002 existiam aproximadamente 26 mil ONGs por aqui. Hoje, calcula-se que sejam por volta de 300 mil, sendo que apenas cerca de 4.500 entidades estão legalmente registradas no Ministério da Justiça. Claro que teve muita gente que viu nisso uma oportunidade de ganhar dinheiro fácil e, com isso, atrapalhar o trabalho de pessoas e entidades sérias. Como separar o joio do trigo? Bom, comece perguntando quais ONGs recebem dinheiro público. Só aí já se pode filtrar muita coisa. Claro que a conta não é exata, mas grande parte dos ongueiros larápios tem um governo ou partido político por trás de suas ancas. E cuidado, pois, por trás daquela fachada bonitinha e bem cuidada, pode ter uma lavanderia funcionando a todo vapor... Há quem diga que não tem dinheiro para ajudar aos outros. E quem disse que precisa? Já ajudei muita gente sem colocar a mão no bolso (até porque ele estava vazio). Uma ação social requer algum dinheiro (via patrocínio), claro; mas ela se faz, principalmente, com pessoas, com voluntários. Vejo muita gente dizendo que "quer fazer" algum trabalho social. Nesse momento abre-se a cratera entre o "querer" e o "fazer". Quem optou pelo "fazer" já está se mexendo, enquanto que o pessoal do "querer", você encontrará dali a um ano (ou mais) ainda "querendo". Não há mistério: a melhor maneira de encontrar a sua atividade no terceiro setor é relacioná-la com a sua profissão. Assim, um engenheiro ensina a construir casas populares; um médico atende pacientes necessitados e dá palestras de prevenção em sua especialidade; um economista desenvolve um projeto de microcrédito etc. Citei exemplos de forma muito rudimentar, mas qualquer mente mais aguçada pode criar seu próprio projeto e procurar instituições sérias, que estejam dispostas a bancá-lo. No meu caso, comecei como "apoio geral", ajudando na parte operacional, carregando caixas, montando e desmontando nossa infra-estrutura, auxiliando o trabalho logístico. Depois, desenvolvemos alguns projetos de oficinas. A primeira delas era a de reciclagem. Por que não fazer uma oficina de desenho, então? A idéia não era das mais originais, mas funcionou muito bem. Nos primeiros anos eu tirava férias do trabalho para fazer essas oficinas. Depois que me tornei um "autônomo", a grana ficou curta e a atitude mais sensata seria esperar a situação melhorar, para poder voltar a participar de ações sociais. Fiz exatamente o contrário. Expandi o trabalho na oficina, promovendo exposições e criando uma espécie de "curso relâmpago", com distribuição de material para desenho profissional. Comecei a garimpar talentos ainda incipientes. Minha missão era fazê-los brotar. Ali eu não só ensinava técnicas de desenho, mas também falava sobre o desenho como profissão (não como "hobby"). Num momento de questionamentos profissionais e conflitos internos como aquele, eu ― antes de convencer aos meus alunos ― precisava convencer a mim mesmo. Sou constantemente criticado pelas minhas posições políticas, por anular o voto e por enxergar nos políticos e partidos apenas a disposição em se (re)eleger. Também sou contestado por nunca oferecer uma solução ― como se eu fosse possuidor de um antídoto contra a doença. "Qual a saída, senão a política?", me perguntam. Faltou perguntar: é nessa política que devemos nos envolver? Imagine quantas pessoas poderiam contribuir de alguma forma, mas preferem se afastar, pois jamais conseguiriam se locupletar, costurar alianças e jogar o jogo da "governabilidade". Política, da forma como é feita hoje, é isso. Primeiro são negociações e concessões, que, mais tarde, se tornam negociatas e corrupções. O sistema é esse e só permanece dentro dele quem estiver disposto a abrir mão das concepções mais básicas de bom senso e caráter. "Ah, mas é preciso entrar na política para tentar inverter o processo"... Claro. Talvez eu peça isso ao Papai Noel neste Natal. Realmente não sei qual é a saída para o mundo, nem tenho a pretensão de saber. Mas sei que não é na política partidária que eu encontrarei as respostas, mas sim no trabalho social. Tudo aconteceu numa época muito estranha da minha vida. Quando eu já sucumbia diante da apatia e me afogava no maremoto da mediocridade, apareceu a oportunidade de fazer parte de algo realmente importante. Minha saúde financeira lá, definhando, e eu me aventurando em caprichos altruístas. Foi tudo muito paradoxal e caótico, mas foi assim que aconteceu. Naqueles dias confusos, eu simplesmente não conseguia enxergar que aquilo que eu fazia era exatamente o que me salvava, me libertava e, principalmente, me redimia. Muitos questionarão que minha contribuição foi mínima, que alcançou um público muito pequeno e restrito. Outros poderão rir de minha ingenuidade ao achar que isso tudo não passa de um devaneio juvenil. Nem tenho como contestar isso. E pode até ser verdade, se analisarmos a questão por um conceito "micro". Mas, se olharmos pelo contexto "macro" e somarmos todos os "ingênuos" com quem trabalhei, muitas coisas importantes foram feitas... Opa, aí está. Um novo horizonte se abriu agora. Encontramos a lente que nos faz enxergar o quadro todo. Se você enxergou o mesmo que eu, seu conceito de solidariedade já mudou. E se você optar por ir além e pegar a estrada da ação social, só tome cuidado para não se deixar seduzir pelas benesses do financiamento público. No trabalho social, só existe duas opções: se manter alheio às questões partidárias ou ser um fantoche de grupos políticos. Entre as duas alternativas, fique com a primeira. Não deixe que usem sua filantropia, seu trabalho e esforço como trampolim eleitoral. Porque, ao final de tudo, se você acreditar que eles não são capazes disso, aí, sim, você será um ingênuo de fato. Nota do editor Trechos dessa coluna estão no livro Caminhos de um Brasil solidário. Leia também "Arte e liberdade" "Coque, o violeiro de uma mão só" Para ir além Diogo Salles |
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