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Segunda-feira, 23/2/2009 Sobre o Islã, de Ali Kamel Ricardo de Mattos "Ele (será) contra todos, e todos contra ele, E ele habitará apartado de seus irmãos." (Gênesis, 16, 12) Pedimos desculpas ao leitor se comentamos um livro que ele já possa ter lido, visto que Sobre o Islã (Nova Fronteira, 2007, 320 págs.), do jornalista e sociólogo Ali Kamel, foi publicado em 2007. Como passamos aquele ano inteiro ocupados na busca de corno em crânio equino, deixamos de acompanhar certos lançamentos cuja leitura teria sido mais útil. Os conflitos no Oriente Médio renovando-se constantemente fazem com que o interesse pela História dos povos envolvidos não se arrefeça e sempre se busque um "porquê" e uma saída para tanta violência. O valor deste livro revela-se em três pontos. Primeiro, pela diferença da abordagem, centrada na afinidade, e não na diferença, entre judeus, muçulmanos e cristãos. Segundo, pela objetividade do texto. Terceiro, por preparar o fôlego para a leitura de obras mais densas e volumosas, como Uma história dos povos árabes, de Albert Hourani e Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence, na qual foi baseado o filme Lawrence da Arábia. Divide-se o livro em cinco partes. Na primeira, o autor detém-se no período das escrituras que vai de Adão a Maomé. Falamos em "escrituras" e não em "Escrituras", pois ele alterna-se entre os textos sagrados do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo, respectivamente, a Torá ― ou o Pentateuco do Antigo Testamento ―, o Novo Testamento e o Alcorão. As narrativas são aproximadas, e desta aproximação saltam os pontos de contato e de contrariedade. Um ponto foi fundamental para alertar o leitor que busca informar-se acerca da cultura islâmica. Ao tratar da queda de Adão e Eva no comer o fruto proibido, segundo o Alcorão, é-nos informado que eles deixam de ver o mundo como uma realidade dependente de Deus e passam a enxergar este mesmo mundo como uma realidade diferenciada. Se considerarmos que Plotino também deteve-se em explicar, em um dos tratados das Enéadas, que a problemática humana da dor e do sofrimento se explica pelo encanto do Homem com as coisas deste mundo, ao mesmo tempo que volta as costas para sua origem divina, deparamo-nos com o motivo de certa dificuldade em compreender a Cultura e a Religião Islâmica. É que se insiste em recorrer às fontes greco-romanas, cristãs, européias e norte-americanas para conhecer uma Civilização que, embora co-originária em relação a judeus e cristãos, desenvolveu seu pensamento, suas artes e sua ciência a partir de outras premissas e visando outros fins. Não se lê o Alcorão com a cabeça "formatada" pela Bíblia, sendo necessária certa expansão cultural para que se possa realizar a leitura harmônica entre eles, tal como sugere o primeiro: "e que crêem no que foi descido do céu, para ti, e no que fora descido antes de ti, e se convencem da Derradeira Vida" (Sura II, versículo 4). Segundo Helmi Nasr, autor da melhor tradução do Alcorão para o português, o "no" que grifamos é a referência à Torá e ao Evangelho. Daí porque os muçulmanos se referem a eles como "povos dos livros". Em seguida, Kamel discorre sobre as diferenças existentes entre os próprios muçulmanos, diferenças estas originadas com versões sobre a Morte de Maomé. Conforme se adote uma ou outra versão, o fiel é sunita ou xiita. Conforme se é partidário de um ou outro partido, a legitimidade dos primeiros califas é aceita ou contestada. Califas seriam os continuadores do Profeta, seguindo de onde ele parou, mas sem inovar as revelações deixadas por ele. Portanto, o que está em jogo é a sucessão de Maomé, algo ainda tão presente que sentimos certo pasmo quando nos damos conta do quanto isso ainda permeia as relações e os costumes. Numa reportagem da National Geographic sobre Jerusalém, um morador foi entrevistado e declarou que "há dois mil anos" um ramo de sua família resolveu seguir Jesus Cristo, e com a cisão, este ramo passou a morar em outro bairro da cidade. No século passado, nossa família teve três gerações. Se mantido o padrão por vinte séculos, seriam sessenta gerações. Considerando que a cada geração retroativa o número de familiares dobra ― um filho, dois pais, quatro avós ―, para nós torna-se impraticável estabelecer um vínculo sincero de afinidade a partir da quarta geração, que dizer de comprar suas brigas e manter seus pensamentos. No entanto, mesmo que em outros pontos do globo judeus, muçulmanos e cristãos tenham chegado a um nível satisfatório de convivência ― nem falamos em aceitação ―, se ainda há pessoas preocupadas com que seus familiares fizeram "há dois mil anos", elas não parecem dispostas a adotar maior realismo na resolução de questões religiosas, territoriais e políticas. Depois de analisar a violência atribuída ao Islã, o uso de véu pelas mulheres e a pena de apedrejamento, Kamel investiga as origens do terror, partindo do princípio de que não se trata de fundamentalismo, mas de totalitarismo. "Fundamentalista" é o seguidor de qualquer texto sagrado que queira viver de acordo com sua literalidade e nada além. São pessoas que vivem como entendem, coexistem com os discordantes, mesmo que sem maior proximidade, e geralmente são até pacifistas. O totalitário, além de radicalizar a leitura do texto, exige que outras pessoas sigam exatamente o que ele acredita. O totalitário quer impor sua leitura mesmo que seja necessário recorrer à força. Daí a contaminação de toda a religião, toda a cultura, por um foco histérico e ignorante. Neste foco destaca-se Osama Bin Laden, ortodoxo sunita que não hesita em aliar-se a xiitas, desde que sejam eles quem se ofereçam para as missões suicidas. Consulte-se a lista dos terroristas do 11/9 e descobrir-se-á a proporção. Além disso, ele mesmo talvez nunca tenha lido o Alcorão inteiro, limitando-se a escolher os versículos que comprovem suas "teses" e contentem seus seguidores, mesmo que seja necessário editar o texto para montar um novo. Um exemplo das distorções promovidas pelos radicais foi o que se deu com a "jihad", palavra árabe cuja tradução é "esforço". A jihad maior de um fiel é seu esforço em vencer suas tendências nefastas, seu desequilíbrio. Aproxima-se da luta contra o Ego, dos budistas. A jihad menor é a guerra defensiva, e só defensiva, visto que se veda a imposição da fé islâmica pela força. A fonte da distinção encontra-se num relato sobre a vida de Maomé. Al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, não só revogou este relato por ser contrário às suas ideias, como também pregou que a única jihad agradável aos olhos de Allah é a guerra ofensiva contra os infiéis. E foi a versão que prevaleceu, ainda que contrária ao Livro que ele diz seguir. Sobre o Islã demonstra haver uma continuidade entre as correntes radicais surgidas no tempo, desde Wahhab no século XVIII ― segundo o calendário cristão ― até Bin Laden, passando por Al-Banna e Sayyid Qutb. Estes nomes pouco ou nada dizem para os ocidentais, mas foram os responsáveis por manter a pólvora seca, isto é, sempre cultivaram e pregaram a intolerância, o isolamento, o radicalismo das posições, a rejeição à evolução dos tempos. Foram ideólogos do terror que de alguma forma encontraram ouvidos interessados e olhos atentos. A Irmandade Muçulmana citada, criada no Egito, foi mais um movimento reducionista e agressivo que variou entre a legalidade e a clandestinidade, também sofreu dissidências, e desaguou ou serviu de inspiração para outros como o Jihad Islâmico, o Hamas e a Al Qaeda. Ramificou-se também na Irmandade Muçulmana da Palestina, cujo fundador Abdullah Azzam foi, nas palavras do autor, o primeiro grande parceiro de Bin Laden. Ali Kamel encerra seu trabalho lançando e respondendo oito perguntas sobre a guerra do Iraque. Esta talvez seja a parte mais polêmica do livro, mas as pesquisas e fontes são analisadas de acordo com todo arcabouço de dados históricos do Oriente e do Ocidente ― oposição que cada vez é-nos mais desagradável ― e suas conclusões expostas nos limites do ensaísmo. Para ir além Ricardo de Mattos |
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