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Terça-feira, 17/2/2009
Millôr Fernandes, o gênio do caos
Diogo Salles

Gênio... Como se define um gênio? Quem tem o poder de elevar um ser humano a esse status? Num mundo onde cada um exalta os seus próprios gênios ― que, muitas vezes, se confundem com ídolos ou heróis ―, as discussões parecem sempre cair na vala do relativismo. Claro que existem gênios incontestáveis. Na música, nas artes, na literatura... Mas não é minha intenção aqui suscitar falsas polêmicas, empurrando conceitos de genialidade, nem ficar apontando quem é e quem não é gênio.

Como um cartunista metido a escrevinhador que sou, não apenas descrevo minha visão pessoal de quando vi a genialidade se materializar na minha frente, mas também como dela pude usufruir em meu trabalho. Sei que me coloco em situação algo suspeita, ainda mais pela redundância de se sublimar a genialidade de Millôr Fernandes. O que me move aqui é o fato de que as exaltações a gênios sempre são guardadas para a posteridade, quando o tal gênio já não está mais entre nós. Aí, sim, pululam ensaios, artigos, estudos, perfis, biografias, coletâneas e homenagens póstumas, onde viúvas e órfãos jogam flores nos túmulos dos imortais. Mais estranho ainda é quando resolvem celebrar o "aniversário da morte" do sujeito ― como fizeram com Machado de Assis no ano passado. Penso que já passou da hora de romper com essa mórbida tradição.

Millôr era um autor que sempre rondava minhas lembranças mais remotas. Primeiro pelo desenho, que eu considerava muito estranho. Achava que parecia rascunho, achava que os personagens pareciam ogros (santa ingenuidade!). Seus textos eu lia timidamente ― e eram sempre aqueles que vinham atrelados aos desenhos, funcionando como legendas. O formato texto/imagem já me atraía e me intrigava a maneira caótica como ele "diagramava" as duas coisas. Gostava das ironias, das brincadeiras com as palavras, mas talvez eu ainda não estivesse preparado para aquilo.

Só anos depois, quando meu cinismo já parecia ter encontrado um caminho sem volta, resolvi mergulhar de cabeça em todos seus escritos. E minha vida nunca mais seria a mesma. "Sim, é isso!", eu repetia a cada frase lida. Os pensamentos, as metáforas, as ironias que sempre idealizei. Estavam todas ali. De repente, tudo fazia sentido. O que não quer dizer que encontrei respostas às minhas inquietações ― muito pelo contrário, mas voltemos a este assunto mais para frente, pois a demora dessa descoberta, afinal, se mostraria boa.

Para entender Millôr em toda a sua complexidade, precisamos estar com o ceticismo e o sarcasmo em dia. A qualquer descuido, perde-se a piada. Se estiver escondida, disfarçada ou cifrada ― e o leitor não se der conta disso ―, a piada perde a cor, perde o viço (isso se não escapar completamente). Descobri também de onde vinha aquele traço, que eu já não achava tão estranho assim: Saul Steinberg (sim, ele também tem suas referências!). Ah, e a razão de seus personagens parecerem ogros era mais simples do que eu pensava: eles eram ogros.

Ler Millôr aguça qualquer senso de humor (ou a falta de). No meu caso, foi a transfusão de sangue definitiva na minha veia cômica. Uma mistura de sensações e sentidos que jamais sonhei experimentar. É realmente difícil mensurar o tamanho do impacto que sua obra teve sobre mim. Talvez eu só consiga dimensionar isso daqui a décadas. Eu poderia ficar divagando aqui e deixá-lo no escuro, mas meu repertório não é tão vasto quanto eu imaginava. Sendo assim, o melhor que posso fazer neste momento é falar sobre algumas das leituras mais marcantes, deixando minhas impressões, sensações e reflexões (não muito profundas) a respeito.

Para traçar a rota inicial dos primeiros anos de sua carreira (iniciada em 1943), Trinta anos de mim mesmo é o mapa que te levará ao destino. Entre textos e desenhos produzidos para publicações como O Cruzeiro, Pif-Paf e, mais tarde, para O Pasquim e Veja, ele já desafiava as leis fonéticas e semânticas e questionava tudo: a sociedade, a imprensa, os comunistas e todo aquele pessoalzinho "prafrentex".

E por falar em Pif-Paf, há também uma edição "remasterizada" das primeiras (e únicas) oito edições da revista. O que começou como uma seção semanal de Emanuel Vão Gogo na revista O Cruzeiro ― e foi interrompida por causa de A verdadeira história do paraíso ―, resultou na publicação de humor mais anárquica, inteligente e independente da imprensa brasileira. Fechada pelos brucutus da ditadura, Pif-Paf não foi apenas a precursora de O Pasquim. Era Millôr no melhor de sua forma, redesenhando a história do humor brasileiro, produzindo impetuosamente e ainda fazendo as vezes de editor.

Que país é este?, originalmente lançado em 1978, ele aproveitava a ditadura militar em frangalhos para fazer um inventário do nosso fracasso através de crônicas e pequenas definições de grandes proporções, como "Brasil, um filme pornô com trilha de bossa nova". Desde as grotescas inversões de valores a todos os absurdos que definiam o Brasil ― e continuam definindo, por isso o livro ainda é tão atual ―, ele recolhia os cacos da política tupiniquim e tirava toda a sujeira que havia sido (e continua a ser) varrida para debaixo do tapete.

Em O livro vermelho dos pensamentos de Millôr a premissa é uma só: demolir todos os conceitos, crenças e verdades consumadas pelo establishment, reexaminando o pensamento ocidental (e oriental), num irresistível convite ao niilismo. Mas atenção: leitura não recomendada aos adeptos das cartilhas, da obediência, da subserviência e do pensamento de manada.

Uma leitura rápida (e engraçadíssima) é Crítica da razão impura ou O primado da ignorância, onde Millôr reduz a pó as obras mais famosas de dois ex-presidentes brasileiros: Dependência e desenvolvimento da América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Brejal dos guajás, de José Sarney. Derrubar o tesão (grande tese, segundo ele) de FhC ("superlativo de PhD") era quase uma necessidade, diante da linguagem empolada, pretensiosa e pseudointelequitual do nosso ociólogo-mor. Já sobre Brejal dos guajás, ícone máximo do embuste literário, pude finalmente entender porque Sir Ney é a antimatéria da literatura nacional. Sempre o desprezei como político, mas depois de ler essa "crítica" (um eufemismo) de sua "obra-prima" (uma hipérbole), confesso que deu até pena do pobre Ribamar... Depois recobrei os sentidos e o desprezo voltou.

Há também obras menores ― talvez em tamanho, mas não em importância ―, onde se encontra um Millôr em facetas diversas. O teatrólogo que enfrentou a censura em Um elefante no caos, o despretensioso de Hai-Kais, o minimalista de O livro branco do humor, o contista de Novas fábulas & Contos fabulosos e o autoindulgente, que passeia em cores e aventuras gráficas de Um nome a zelar. Tem para todos os gostos.

Aos que olharem para o conjunto da obra e não souberem por onde começar, aqui vai a minha sugestão: comece pela Bíblia. Não aquela, que muitos chamam de "sagrada". Refiro-me à Bíblia do caos ― Millôr definitivo (L&PM, 2002, 624 págs.), um compêndio de tudo o que melhor define o pensamento millôriano em forma de aforismos. Garanto que, para ler esta Bíblia, você não precisará ajoelhar no milho. Para onde vou, carrego a minha junto comigo. É o meu oráculo. Frases como "A proximidade é conivente. A distância é crítica." me guiam sempre que vou fazer uma charge. Assim, posso olhar para todos os políticos, caciques, partidos, minorias, bandeiras, facções e ideologias com a mesma distância e desconfiança. Da extrema esquerda à extrema direita (passando pelo extremo centro), vejo-os todos lá, equidistantes. Millôr é tão genial que pode nos fazer enxergar a política em forma de mosaico. Penso que é assim que ele vê as coisas: como um enorme mosaico (está lá, em Trinta anos de mim mesmo). Não, não é apenas o "Guru do Méier", como muitos o chamam. É gênio. Gênio do humor, gênio da contestação, gênio do livre pensamento... Gênio do caos.

Ao contrário do que você possa pensar, toda essa bem humorada jornada literária não te faz encontrar respostas às suas perguntas. Ler Millôr te faz perguntar respostas ― como sugere o Ministério das perguntas cretinas. Com isso, pude dizer adeus às verdades absolutas e aos cômodos deslumbramentos da vida. No aconchegante castelo das certezas, aquele espaço era alugado ― e eu não podia pagar por ele. Aqui, no desconfortável cafofo da contestação e dos questionamentos, o espaço é pouco, mas é meu.

Bom, agora deixe-me voltar ao cafofo. Está na hora de procurar perguntas para as respostas do dia.

Nota do Editor
Leia também "Lições que aprendi com o Millôr".

Diogo Salles
São Paulo, 17/2/2009

 

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