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Sexta-feira, 20/3/2009 A revolução de saber das coisas Marta Barcellos Uma amiga, de 24 anos, estranhou quando lhe contei ter evitado as palavras "ditadura" e "golpe" ao entrevistar alguns velhinhos para um livro. A nossa conversa, vale ressaltar, aconteceu antes da "ditabranda", infeliz expressão cunhada pela Folha de São Paulo em um editorial, que serviu pelo menos para presenciarmos uma reação dos sempre calados intelectuais brasileiros. Pois bem. No meu caso, a intenção não era polemizar ou opinar sobre a ditadura. Ao contrário, eu apenas pretendia entrevistar senhores que imaginava serem bem conservadores naqueles anos, e a política servia como mero pano de fundo do assunto principal ― o mercado de capitais da época. Intuitivamente, expliquei à amiga, busquei um termo mais neutro, "regime militar", para formular minhas perguntas, sem que isso representasse um problema para mim nem um risco para o andamento da entrevista. Como ela é recém formada, e eu já tenho uns bons anos de estrada, falei da importância de o jornalista se "mimetizar" em determinadas situações ― defendi que vale apelar para a indumentária, usar jargões, enfim, buscar uma identificação que quebre o "gelo" ou a resistência do entrevistado. ― Mas eu não conseguiria jamais usar a expressão "revolução", porque aí seria demais para mim ― ressaltei. Se o diálogo acontecesse algumas semanas depois, teria brincado que "ditabranda" eu não falaria nem sob tortura. O fato é que quando mencionei "revolução", o espanto da minha amiga me chocou: ela nunca soube que o golpe militar foi chamado assim por seus idealizadores. Muito menos que a palavra ainda é usada por alguns militares e velhinhos conservadores. Aprendeu nos livros de história todos os detalhes do golpe, e ponto final. Vou falar o quê? Os livros estão corretíssimos, a discussão "golpe ou revolução" tornou-se completamente obsoleta com a vitória final da democracia, mas mesmo assim fiquei pensando se seus professores não deveriam ter destacado a tentativa semântica de dar um cunho popular à ação tramada dentro dos quartéis. Afinal, essa é a diferença entre ter 24 ou 43 anos, conformei-me. A proximidade temporal de um fato que se tornou histórico nos traz uma sabedoria difícil de ser assimilada em registros formais, como livros de história. A semântica, por exemplo, acaba relegada a segundo plano, quando pode estar nela a chave para a compreensão dos sentimentos de uma geração. Naquele dia, decidi usar o ensinamento no livro, e não desprezar detalhes das entrevistas que pudessem ser ricos de significados. Hoje, escrevendo este texto, fico imaginando qual será a idade do editorialista que batucou "ditabranda" no editorial da Folha, ou que espécie de livros o distanciou tanto assim dos fatos ocorridos na ditadura militar brasileira. Minha preocupação é com a arrogância dos que julgam dominar um assunto por conhecer a cronologia dos fatos, ou ter lido meia dúzia de versões superficiais, e parciais, sobre eles. Nas pesquisas escolares, por exemplo, a garotada corre para o Google, sem que lhe ocorra a alternativa de travar uma conversa com os mais velhos sobre o assunto. Em uma boa prosa com os avós, saberiam que o vizinho defensor da "revolução" era temido pelos que sofriam com a violência da ditadura. E nunca mais esqueceriam o tom emocionado daquele relato. Se não houver gente mais velha e experiente por perto (sempre há, só que eles não são mais notados), a literatura é sempre uma alternativa segura para se adquirir um pouco desse conhecimento verdadeiro, encharcado de sentimento. Eu própria acabei de viver uma situação assim: do alto de meus 40 e poucos anos, imaginava entender a tal revolução sexual dos anos 60. Burocraticamente, poderia assinalar como marco a invenção da pílula anticoncepcional, falar das conquistas femininas, do movimento hippie. Mas a verdade é que a minha ficha sobre o que a revolução sexual representou de fato para a vida das pessoas caiu outro dia. Por acaso, li consecutivamente dois romances ambientados nos anos 50, um na Inglaterra e outro nos Estados Unidos. Em Na praia, de Ian McEwan, fui a mulher privilegiada que podia acompanhar, com olhos pós-revolução, a confusão de sentimentos de dois personagens perdidamente apaixonados e fatalmente afastados pela repressão sexual que impossibilitava qualquer comunicação entre eles. Emocionei-me pensando em quantos amores naufragaram assim, antes da liberdade conquistada nos anos 60. Em Rua da revolução (traduzido para um esquecível Foi apenas um sonho), de Richard Yates, a sensação de asfixia parece ser causada apenas pela superficialidade e pela monotonia do estilo de vida nos subúrbios americanos. Afinal, isso não mudou muito com a revolução sexual. Mas a repressão sexual também está presente. Para o casal protagonista, a tragédia se deu pelo engessamento dos papéis reservados a homens e mulheres naquele tempo. Ele acabou se resignando; ela, não. Para piorar, não havia a pílula. Claro que eu sempre "soube" que as mulheres sofriam tendo pencas de filhos indesejados. Mas só ali, imersa naquela história, pude vivenciar o sofrimento de não ter opção, de abortar sonhos, de desistir da própria vida (às vezes, pela dos filhos). E o drama não era só dela: no livro, ao contrário do filme, fica claro que ele também não deseja o terceiro filho, apesar de usá-lo para justificar sua rendição ao "sistema". Depois do que vivi, graças aos fabulosos McEwan e Yates, não ousaria minimizar a importância da revolução sexual, dizer que pouco mudou, só para ser engraçadinha ou marcar posição, como muitos fazem por aí com assuntos sérios. Aliás, sempre prefiro me calar sobre o que não sei. Para saber mais, posso ler. Ou apenas seguir o conselho de Nelson Rodrigues: "Envelheçam". Nota do editor Marta Barcellos mantém o blog Espuminha de leite. Marta Barcellos |
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