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Sexta-feira, 10/7/2009 Projetando um leitor Ana Elisa Ribeiro Os discos de vinil eram mais charmosos. Nem todo mundo concorda com isso, mas sabem bem do que estou falando as pessoas que colecionaram vinis azuis, amarelos e vermelhos, com historinhas narradas por atores. Ainda hoje as capas quadradas me vêm à lembrança, assim como a voz de quem narrava a história do Pica-Pau. Um pouco mais tarde, a coleção de discos de vinil perdeu as cores. Todos eram pretos, brilhantes e tocavam rock. Há alguns meses, ao descobrir minha coleção (guardada na casa dos meus pais, onde ainda há picapes de som), um aluno me ofereceu dinheiro farto em troca de minha edição importada do Nevermind, do Nirvana. Se havia espaço para o leitor-fã, imagine-se para os designers, que se esbaldavam no trabalho de fazer capas e encartes de "bolachões". Mas não choro à-toa. Os discos de vinil são apenas lembrança. Embora ainda possa ouvi-los, incluindo-se aí o gesto memorável de colocar, manualmente, a agulha nos primeiros sulcos, sem arranhar o disco, não faço isso há tempos. Escuto meus CDs em paz, dirigindo pelas ruas, o que torna, me parece, a cidade menos árida. Ultimamente, ando às voltas com o Lenine mais novo (Labiata), que me deixa arrepiada, mesmo durante engarrafamentos e chuvas de verão torrenciais. Diz minha mãe (e eu confirmo) que investiu pesado para que os filhos gostassem de ler. Deu muitos discos de vinil coloridos, com histórias encantadas; comprou quase todas as obras que a escola indicou (escola pública, frise-se); nos presenteou com as carteirinhas das bibliotecas públicas mais próximas e até com a da central, na Praça da Liberdade; não ofereceu nunca qualquer resistência aos títulos que trazíamos para casa (ganhados ou emprestados); e ela mesma contou muita história para todos os pimpolhos, na esperança de que gostássemos daquele ritual das palavras. Deu 25% certo. Dos quatro que somos, apenas eu enveredei com força pelas sendas da leitura e da escrita, inclusive fazendo disso meu modo de vida, de sobrevivência e, mais, meu estilo de vida, algo absolutamente incorporado ao meu cotidiano. Meus três irmãos se apegaram menos à ideia. O segundo lê sem problemas, mas não se tornou um viciado completo. Os dois mais novos leem com certa raridade, embora não tenham nojo de leitura. Não sei até que ponto essas coisas se transmitem, mas rezam as estatísticas (inclusive as mais bem-feitas e confiáveis) que as chances de leitores proliferarem e gerarem outros leitores é grande, ao menos bem maior do que a de não-leitores convencerem alguém de que ler é legal. Meus pais não eram leitores contumazes. Meu pai, médico clínico, raramente era visto com livros entre as mãos. Até hoje, lá em casa, há apenas uma estante em que ficam dispostos livros de medicina, provavelmente muito desatualizados, em apenas uma das estreitas prateleiras. Minha mãe, assistente social, vivia lendo textos técnicos, mas raramente a víamos entretida com alguma leitura diferente dessa. Tinha uma atitude interessante quanto aos poucos títulos que tinha: guardava-os trancados em estantes com portas. E mais: falava mal de minha avó, sua mãe, que vivia afundada entre as páginas dos clássicos e, segundo a filha primogênita, alheia às carências dos filhos. A despeito de certa distância dos livros, meus pais assinavam revistas e jornais. Estes, sim, artigo obrigatório na casa, o que formou quatro vorazes leitores de diários de papel. O professor Élie Bajard, um dos criadores do projeto Pró-Leitura no Brasil, tem um livro bacanérrimo e baratinho chamado Da escuta de textos à leitura (Cortez, 2007, 120 págs.). Em algumas de suas cento e vinte páginas, o autor menciona o fato de que é importante que as crianças identifiquem as histórias e as leituras aos livros (ou aos objetos de ler). Isso me deixou uns dias bem pensativa. Os discos de vinil traziam muitas histórias, assim como a voz de minha mãe, e isso foi certamente importante para que eu formasse meu gosto pela literatura, mas não me fez identificar, diretamente, histórias e livros, prazer de ouvir e prazer de ler. Com isso, Bajard me fez observar melhor o que venho fazendo com meu filho, um sério candidato a leitor. Sim, candidato a leitor porque, primeiramente, não forçamos nada, nem eu nem meu marido jornalista. O garoto, desde que nasceu, anda pela casa em meio aos carrinhos Hot Wheels, mamadeiras, almofadas e livros. Muitos livros, pilhas pesadas deles, enfileirados em todo canto, prontos para serem lidos. Depois, desde bebê, Eduardo ganha livros. Não apenas os que herdou da mãe, mas os que ganha dos amigos da família. Além dos meus, conservados desde pequena, dei a ele os livros que foram fruto do meu trabalho em editoras de obras infantis. Os amigos escritores enviam livros autografados e o menino acha tudo isso normal. Sinal tênue de que esse investimento vem dando certo aconteceu quando, há alguns meses, uma tia perguntou a ele o que Eduardo queria de aniversário. A timidez o impediu de dar resposta mais exata. A tia, então, passou a apostar e a brincar com ele: "Uma roupa?". Ele disse um pronto "não". "Um brinquedo?". Ele disse um inequívoco "sim". "Um livro?". Ele não respondeu, apenas fez cara de coisa boa. Com esse acervo de infantis em casa, preciso cumprir, quase todos os dias, o ritual da leitura em voz alta, já que o garoto ainda não sabe ler. É analfabeto, vejam, embora já tenha dado suas voltinhas pela internet. Bem mais recentemente, numa dessas noites de contar histórias, percebi que meu cansaço talvez me impedisse de ler o livrinho até o fim. Tentei negociar, deixar para amanhã, mas não teve jeito. "Tem que ler uma história pra mim, só uma". Fui vencida pelo tom de quem implora e pela minha responsabilidade de formadora. Mas achei uma solução menos cansativa: "Deixa eu te contar uma história da minha cabeça, então, sem livro". Pensei em gastar um dos mais de duzentos contos da literatura oral que aprendi no Vale do Jequitinhonha. Para minha surpresa, a proposta não foi aceita. "Não quero. Tem que contar história de dentro do livro". O professor Bajard me veio à lembrança imediatamente. Contei uma historinha curtinha, de um livro ruinzinho, sobre um pequeno tubarão que aprendia a ser ameaçador. Quando terminei as cinco ou seis páginas, fui interpelada: "Por que só tem um pouco de livro?". E, em seguida, a ordem: "Quero que você leia um livro grande, de um tamanho que batesse nas nuvens". Vamos lá, outro livro, desta vez, mais convincente. Depois desse episódio, resolvi tomar um pedaço de papel e uma lapiseira que ficam a postos no criado-mudo. Era preciso anotar essas coisas para escrever uma crônica. Deitei de bruços e comecei a redigir anotações sobre as falas dele e tudo isto que escrevi aqui. Ele deitou-se ao meu lado e ficou observando, interessado, o que eu estava fazendo. E disse, com o queixo apoiado nas mãozinhas: "Eu queria saber fazer letras e números igual a você". Ele ainda não diferencia 5 de S. Boa coisa, não? Eu disse a ele que muito em breve ele aprenderia a escrever. Impaciente para o meu "em breve", ele pegou a lousa mágica de brinquedo (dessas que apagam com um pauzinho) e passou a fingir que escrevia. Quando eu chamei a lousa de "brinquedo", ele me corrigiu severo: "Não é brinquedo. Isto é lápis". O professor Bajard, mais uma vez, parecia surgir ali, entre nós, sentado em nossa cabeceira. Tomara, professor, tomara. Para ir além Ana Elisa Ribeiro |
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