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Quinta-feira, 2/4/2009
Era uma vez o conto de fadas
Marcelo Spalding

Era uma vez o conto de fadas, textos puros e ingênuos de fundamental importância para a formação dos valores infantis num tempo em que as crianças obedeciam mais, ouviam mais, eram, enfim, mais crianças.

Como é tentador começar o texto assim, mas seria ridículo! Ou, pelo menos, tão ingênuo e superficial quanto a versão que nossa geração ouviu dos contos de fadas. Porque se por um lado é verdade que os contos de fadas leves e bem desenhados da Disney marcaram nossa infância, também é verdade que na sua origem tais contos divertiam homens, mulheres e crianças ao redor de uma fogueira, falando de lobos e princesas, amor e morte. Isso num tempo em que sequer existia infância, e a literatura era transmitida oralmente.

Centenas de anos depois, tais histórias não perderam sua força nem popularidade, e são fonte de inspiração constante para escritores infanto-juvenis (figura inexistente até bem pouco tempo) e até para contistas experimentados, como a escritora Lívia Garcia-Roza. Em Era outra vez (Companhia das Letras, 2009, 88 págs.), seu mais recente livro de contos, Lívia revisita as narrativas infantis a partir de abordagens contemporâneas, atualizando conflitos e personagens num mundo sem tanto espaço para a imaginação ― nem tempo para magias.

A ideia não é original. Nós mesmos, aqui em Porto Alegre, através do Grupo Casa Verde, publicamos uma antologia de contos em 2006 intitulada Era uma vez em Porto Alegre, com proposta bem semelhante. Assim como decerto outros o fizeram em outros lugares. Mas o importante, afinal, não é a originalidade, e sim a abordagem que se faz desse tipo de história. Como sabemos, histórias como Cinderela e Branca de Neve remontam à Idade Média, e talvez ficassem restritas ao folclore europeu não fosse o grande esforço de compilação feito no século XVIII, especialmente pelos Irmãos Grimm. Reunidos em livros, os contos atravessaram o século e chegaram nas mãos de Walt Disney, que aproveitou o núcleo central das narrativas para desenvolver belas histórias de amor ao gosto de meninos e meninas que não passavam frio no inverno nem precisavam trabalhar em campos ou minas.

É esse tipo de história que ficou conhecida como "conto de fadas", ainda que haja mais a presença de animais do que propriamente de fadas, e que hoje repetimos a exaustão para relembrar ou recriar. No caso de Lívia, uma recriação não apenas temática, como também estética.

Partindo das personagens e dos temas das narrativas tradicionais, a autora constrói um conto moderno com todas as suas exigências (unidade de ação, intensidade, tensão, efeito, subtexto), confrontando a própria realidade ao mundo mágico das fadas, como em "A cigarra e a formiga" ou "A pequena sereia". Ali a fábula ou a história infantil são apenas pretexto para um belíssimo conto sobre o egoísmo dos pais, o abandono afetivo das crianças e sua incrível capacidade de inventar a vida ao redor, descobrindo risos e brincadeiras onde o leitor sentirá angústia e opressão (exemplar nesse sentido é o romance Extremamente alto e Incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer).

Em alguns contos, como em "Pequena Sereia", o clássico narrador dos contos de fada, em terceira pessoa, dá lugar para os leitores das histórias infantis, as crianças. E essa voz infantil, de uma criança madura, nada ingênua mas aberta à fantasia, é uma das mais fortes no livro, capaz de nos remeter de volta à própria infância e nos fazer questionar se os contos de fadas não estariam se acabando mais por nossa falta de tempo e imaginação do que pelas crianças do mundo de hoje.

"No caminho de volta pra casa, a sereia contou que era filha do Comandante dos Sete Mares (Sete Mares?). Quase perguntei onde eles ficavam, mas ela podia achar que eu não sabia, então eu não disse nada. Quis perguntar a mamãe se ela conhecia o Comandante, e ela disse que estávamos atravessando a rua e era para eu prestar atenção, não era hora de conversa. Olhei então para a sereinha, só que ela não me viu, porque estava no fundo do balde. Devia estar dormindo, com febre, por causa do resfriado. Mamãe puxou minha mão dizendo que ainda estávamos em pleno perigo, e eu totalmente desligada. Tentei de novo conversar com ela, mas mamãe nunca acha que é hora de conversa, nem ela nem meu pai, e meu irmão não diz nada, dá um chute na bola e quebra uma vidraça e mamãe pergunta se foi de propósito, então ele ri e sai de perto. Aí ela liga pro meu pai do celular e diz que meu irmão voltou a quebrar um vidro, e depois desliga, porque acho que papai também não quer conversa." (em "A pequena sereia")

Ou:

"Antes de eu sair outra vez, mamãe apareceu na porta do quarto e mandou eu jogar o gato fora, de preferência em frente à casa do meu pai, que ficava distante da nossa. (...) Quando minha mãe deu as costas, escutei o gato dizer que ia pular em cima dela. Encarei-o porque, apesar de cruel, ela é minha mãe desde o início." (em "O gato de botas")

Verdade que a criança solicitante e manhosa está presente em alguns contos, como em "Os três porquinhos" ou "A bruxa". "A bruxa", por exemplo, é um diálogo entre mãe e filha, com algumas intromissões furiosas do pai. A filha não consegue dormir por causa de determinada bruxa, e a mãe já tem dificuldades de se manter acordada durante o dia, levando o irritadiço pai a soluções extremas. De macho. E nos fazendo pensar quem ali, afinal, é a bruxa...

Em outros contos temos algumas inversões um tanto previsíveis, como um Lobo Mau que quer tirar satisfação daqueles que o tornaram vilão de suas histórias ou um espelho que se rebela contra a madrasta. Mas, de modo geral, a heterogeneidade do conjunto faz jus à riqueza dos contos de fadas, fonte inesgotável ainda hoje, num tempo de Shrek, Bob Esponja e Pokémon, num tempo de pais ocupados, avós viajantes e irmãos individualistas.

Sem contar que a leitura de um livro desses é sempre agradável, basta o conto mencionar um Lobo Mau para temermos pelas menininhas, lembrar Os Três Porquinhos para pensarmos na nossa casa de tijolos, citar os sete anões para ouvirmos, lá no cantinho do nosso passado, "eu vou, eu vou, para casa agora eu vou"...

Nota do Editor
Leia também "O casal 2000 da literatura brasileira".

Para ir além





Marcelo Spalding
Porto Alegre, 2/4/2009

 

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