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Quinta-feira, 16/4/2009 O Orkut, o Twitter e o Existir Marcos Donizetti Moro na periferia, e gosto, pelo menos na maior parte do tempo. Agora há pouco havia um carro parado em minha rua, volume do alto-falante no máximo e mensagens de gosto duvidoso, acompanhadas de música sertaneja, homenageando alguma vizinha "sortuda" que não pude identificar. Ao que parece a telemensagem já não é o bastante, e o que importa é gritar o que se sente para todo mundo ouvir. Não estou nem aí para as maneiras exageradas e cafonas escolhidas por muitos quando vão declarar seu amor. Acho mesmo que o direito ao exagero e à cafonice deveria ser garantido a todo cidadão apaixonado, pela Constituição Federal; e sonho viver num mundo em que as pessoas fiquem emocionadas ouvindo Roberto Carlos e Odair José. Fiquei pensando mesmo é na estranha (para mim) relação que essas pessoas costumam ter com o conceito de privacidade. Logo lembrei dos programas de auditório nas tardes da TV aberta, em que os conflitos mais íntimos são discutidos diante de toda uma audiência nacional, e em outras situações do gênero. Mas acho que o melhor ponto de partida para entender essa questão é mesmo o fenômeno Orkut ou, de maneira mais ampla, o das redes sociais on-line. O momento é oportuno também porque uma série de reportagens em revistas de grande circulação deixou alguns usuários do Twitter apavorados com a possibilidade de ter sua rede "invadida" pelo povão. "Onde já se viu", dizem, "nosso espaço será tomado pelo povo, essas pessoas que ficam se expondo sem qualquer noção, que falam errado e tiram fotos de péssimo gosto. Maldita inclusão digital!". Existem mesmo diferenças em como as pessoas vão se relacionar com a internet, dependendo do histórico de vida e, é claro, da classe social. Quem teve o computador apenas como mais um eletrodoméstico em casa desde a infância, ou começou a acessar a rede na Universidade, lida com ele diferentemente de quem o comprou em 24x nas Casas Piauí. Mas há mais para entender sobre como as pessoas lidam com a exposição on-line pensando na posição que ocupam e em seu discurso. Os ricos e a classe média são aqueles que historicamente têm voz em nosso país, ainda que seja comum ouvirmos coisas como "a classe média só se fode" ou "neste país só pobre tem vez", frases que já cansei de ouvir. Esse discurso deixa nas entrelinhas, de forma nem tão discreta assim, um antagonismo "nós x os pobres". Para a classe média brasileira [não vou falar nos realmente ricos, pois são estatisticamente irrelevantes], "eu" não sou povo. O povo é uma entidade estranha, alheia à minha identidade; alguém ou algo de quem quero me desprender. Aí temos que a maior parte dos programas de TV é formatada para a classe média, sem falar nas novelas, que são a única fonte de entretenimento para muitos. O pobre, a maioria da população, não se vê, logo não existe. O pobre não tem imagem, então não é. Na novela das oito, mesmo aquele que passa mais dificuldades, o "coitado" que mora na favela, é classe média. Para o morador da periferia, real e simbólica, a única oportunidade de ter uma representação de si mesmo esteve, durante muitos anos, neste favelado da teledramaturgia, afinal, ele não tinha condições de ver o pobre representado no cinema nacional. Mas o que ele sempre recebeu foi não uma imagem de si mesmo, mas de uma classe média que sempre lhe deu as costas, que sempre tentou se manter afastada. E aí temos a inclusão digital e o Orkut. Especulo que o famoso site de relacionamentos do Google deu a este indivíduo não representado e não existente a possibilidade de SER. No Orkut eu tenho uma imagem, construída por mim e compartilhada; eu ganho essa voz que nunca tive, eu marco posição, democraticamente, em meio a pessoas de todas as classes sociais. Meu perfil documenta minha existência, e a ideia é sim inundá-lo com tudo o que tenho e sou, sem qualquer preocupação com um conceito para mim tão abstrato quanto "privacidade". Minha maneira de ser torna-se então um tapa na cara de uma classe que sempre tentou se ver desvinculada de mim. O engraçado é que, para essa classe média que não é povo, a imagem tem a mesma função definidora que tem para o pobre; e ela abre mão da tal privacidade com a mesma velocidade, só que no Twitter. Desta vez, o indivíduo não está buscando uma representação ou uma existência, mas um eu idealizado. A realidade postada ali em 140 caracteres costuma ser muito mais interessante que a vivida pelo sujeito. No Twitter somos todos descolados, inteligentes e blasés. Fica explicado porque o pobre e diferente é tão ameaçador. A presença dele nos lembra de que vivemos ali um mundo cor-de-rosa, um auto-engano, e isso dá raiva. A pessoa que reclama da "orkutização do Twitter" quer que os supostamente VIPs e o povão continuem sendo entidades separadas. Ela quer continuar acreditando nesta imagem fabricada de alguém que é, pelo menos em alguns aspectos, superior, sem que pessoas "sem noção" venham lembrá-la do contrário. Afinal, esse outro é alguém que não sabe nem falar, não é verdade? Pois eu digo para este indivíduo que as tais redes sociais de que todos falam só serão realmente verdadeiras quando forem invadidas pelo Povão. Só aí o "social" do nome fará algum sentido. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog de Marcos Donizetti. Leia também "As redes sociais como filtros". Marcos Donizetti |
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