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Segunda-feira, 27/4/2009
Américas Antigas, de Nicholas Saunders
Ricardo de Mattos

"Esse foi um encontro no qual não somente diferenças enormes de linguagem e tecnologia chocaram-se, mas também uma civilização cujas ideias sobre doenças, filosofia natural, moralidade, espiritualidade e a experiência humana do mundo natural evoluíram por meio de 'outra' trajetória." (Nicholas Saunders)

Na busca de maiores informações sobre os povos americanos, tivemos a felicidade de deparar com Américas Antigas ― As Grandes Civilizações (Madras, 2005, 240 págs.), do professor e arqueólogo inglês Nicholas Saunders. Não fala, evidentemente, sobre todas as nações originárias do Norte, do Centro e do Sul, senão teríamos uma enciclopédia. Dedicando-se aos povos do México, da América Central e da América do Sul Andina, entrega ao leitor uma obra breve mas substancial. Saunders não divide os continentes estudados em América Central e América do Sul. Si o fizesse, excluiria o México, que territorialmente pertence à América do Norte. Prefere, pois, ser mais preciso ao falar em Mesoamérica e América do Sul, delimitando melhor seu trabalho. Com esta nomenclatura, o que é designado como Mesoamérica abrange a porção que vai do México ao Panamá, incluindo o mar do Caribe com as grandes e pequenas Antilhas. América do Sul, é claro, designa o território que começa na Colômbia e termina ao sul do Chile. É conferida ao leitor a oportunidade de lembrar que Hugo Chávez e Evo Morales não são o que há de mais interessante além das fronteiras brasileiras.

Na manhã do dia dez de outubro de 1492, Cristóvão Colombo desembarcou na ilha de San Salvador, hoje pertencente às Bahamas. Após, fez um périplo entre as costas de Cuba e da ilha de Hispaniola, território atual do Haiti e da República Dominicana. Curioso reparar que si era próprio ao imaginário medieval e renascentista a descoberta de novos lugares, na prática o fato passou desapercebido. Colombo acreditou ter encontrado a rota para a China, não percebendo de imediato a chegada a um novo continente.

Dois foram os principais povos encontrados nas Antilhas: os tainos ou arawaks nas grandes e os caraíbas nas pequenas. Destes veio o nome do mar, Caribe. Os primeiros aliaram-se aos espanhóis, interessados no reforço contra antiga rivalidade. Com pequenas variações culturais, eram habitadas todas as ilhas desde Cuba até Trinidad, em se utilizando os nomes atuais. Duas histórias encontraram-se, cada uma no seu andamento, e alteraram definitivamente a feição do "Novo Mundo". De onde surgiram os tainos e caraíbas? Saunders explica que em Trinidad foram encontrados registros de povos caribenhos datados de 5500 a.C.. Várias vezes ele explica que certas regiões da Mesoamérica foram ocupadas por levas migratórias oriundas da América do Sul. E como eles chegaram até aqui? Duas as explicações possíveis e que não constam do livro. A primeira e mais fortemente defendida informa que o homem ocupou as terras americanas do norte, do centro e do sul viajando por rotas que ora margearam o Pacífico, ora margeavam o Atlântico, ora investiam no continente. Estas migrações teriam ocorrido entre 24 e catorze mil anos atrás e davam continuidade a uma jornada iniciada na África há milhares de anos. A segunda explicação, bem mais tímida e contestada no meio científico, defende que as Américas foram colonizadas por povos que desde sempre viveram aqui. O estudo da evolução multirregional não afasta a teoria das migrações, porém não lhe confere exclusividade. Enfim, como lembra o autor, o "Caribe e seus povos indígenas também representam a primeira experiência europeia com o até então desconhecido continente americano. Muitas das impressões, tragédias, e mal-entendidos entre ameríndios e europeus pelas Américas ocorreram no Caribe".

Deixando o mar e os territórios insulares, o autor entra pela porção continental da Mesoamérica discorrendo sobre a cultura olmeca, tida até recentemente como "cultura mãe" em relação aos maias e astecas. Estas duas, contudo, recepcionaram os espanhóis; aquela, não. A civilização olmeca teve sua ascensão e declínio em período anterior à era cristã, sendo descoberta em escavações iniciadas no século XIX. O local de estabelecimento foi o istmo de Tehuantepec, a faixa de terra mais estreita do mapa mexicano, com vista para o Golfo do México. As descobertas permitem considerá-la como das mais sofisticadas a partir de sua organização social e política. É notável a técnica funerária, primeiro porque a complexidade dos túmulos revela um exercício de séculos, e segundo, porque sepulcros requintados destinados a crianças permitem especular sobre a organização social e hierárquica. Se nada poderiam ter feito em seus poucos anos de vida, qual o motivo de tanta riqueza? Eis uma obra que convida o leitor a lembrar que si não eram aplicáveis aos "novos povos" os padrões europeus de cultura, de religião e de política, não era pouco o que eles tinham a apresentar. São características da estatuária olmeca as cabeçorras de basalto. Como foram encontradas cheias de furos, suspeita-se que a depredação esteja ligada a algum ritual de sucessão governamental. A cada passo parece inevitável o recurso ao que se sabe de uma cultura para tentar entender outra menos célebre. Para citar exemplo único, fato análogo deu-se no Egito após a ansiada morte do faraó Akenaton. Em 1250 a.C., quando a cultura olmeca estava no auge, Tróia foi destruída. Cerca de 400 a.C., época provável do declínio, a cultura helênica estava no apogeu, com o Paternon recém-construído. Sócrates, Platão e Hipócrates, entre outros, estavam em atividade. Na Índia, Sidarta Gautama já era o Buda e exercia seu magistério.

Saunders passa dos olmecas aos zapotecas, civilização que floresceu entre 500 a.C. e 750 d.C.. Durou mais que o Império Romano, iniciado este com a expulsão dos etruscos e fundação da república em 509 a.C., e caído com a tomada por Odoacro em 476 d.C.. Em 500 a.C., Confúcio vivia em Xou, reino que depois integraria a China. Os zapotecas estavam sediados em Monte Albán, cidade-estado próxima ao já referido istmo. Destacavam-se pela posse da escrita, de um sistema matemático, pela arquitetura monumental e pelas relações comerciais e bélicas mantidas com os povos vizinhos. Possuíam dois calendários, um de 365 dias e outro de 260 cuja combinação fornecia as datas das celebrações religiosas. Como os olmecas, também acreditavam na ancestralidade sobrenatural, mas enquanto aqueles criam que os nobres descendiam de onças ― ou jaguares ―, os zapotecas invocavam o Céu e a Terra como avôs iniciais. Daí serem chamados "Povos das Nuvens". Os guerreiros preferiam representar conquistas territoriais com símbolos de colinas, e não de cidades ou aldeias. A explicação provável encontrada pelo autor funda-se na perenidade das colinas e na efemeridade das cidades. Si uma civilização tão recuada no tempo e extinta acalentava a ideia da impermanência, é permitido cogitar sobre o que existia nas Américas naqueles dias, no que testemunharam aquelas pessoas e que hoje nem suspeitamos. Os zapotecas não estavam extintos quando chegaram os espanhóis, mas de muito haviam sido sobrepujados pelos mixtecas, mormente nas províncias. O povo mixteca fazia as anotações pictóricas em códices de pele de cervo, acomodados de forma sanfonada entre capas mais firmes.

Perto da Cidade do México encontra-se o sítio arqueológico da que foi a cidade-estado Teotihuacan. Seu poderio estendeu-se, no espaço, por toda a Mesoamérica, sendo contemporânea e mantendo relações comerciais e diplomáticas com os mais e zapotecas. Com estes, compartilha o declínio no século VII da era cristã, o mesmo em que os omíadas estabeleceram o Império Islâmico e o feudalismo delineava-se na Europa. Em Teotihuacan estão as maiores construções encontradas, entre elas as pirâmides do Sol e da Lua, e o impressionante complexo da Rua dos Mortos. Entre as ruínas dos templos foram e continuam sendo encontradas provas de numerosos sacrifícios rituais humanos. Sua população alcançou patamar muito elevado: duzentos mil habitantes. Si hoje o número é inferior ao de taubateanos, por exemplo, naquele contexto impulsionou o erguimento de complexos habitacionais que comportassem as pessoas de maneira tão organizada e saudável quanto possível. Mais que poder, a cultura desta cidade serviu de inspiração e de modelo para os astecas.

De todas as civilizações apresentadas aos espanhóis nos séculos XV e XVI, a dos maias era, de longe, a mais refinada. O topo cultural deu-se no período clássico, estabelecido entre 250 d.C. e 900 d.C.. Comparando, em 220 d.C. a China foi dividida em três reinos regionais e em 954 d.C. os reinos ingleses foram unificados sob os saxões. Entretanto, a origem dos maias remonta a 2000 a.C., coeva, portanto, à civilização micênica de Creta. Não foram extintos, sabe Deus como, pois na Guatemala do século XXI há lugarejos habitados por remanescentes. Como obtém-se a marcação dos anos? Pelas estelas, pedras com inscrições indicando fatos importantes, localizados no tempo por estudos matemáticos, astronômicos e pelo que se aprendeu com os próprios maias. Não foi apenas no Brasil que se elaboraram gramáticas e dicionários de tupi e latim e tupi e português. A língua maia é secundária no México e em Belize, assim como o tupi-guarani no Paraguai. É possível encontrar atualmente uma edição nacional maia-português da obra Popol Vuh, onde são narrados os mitos de criação deste povo e as aventuras dos heróis gêmeos Hunaphu e Xbalanque. Mitologia e religião permeavam o cotidiano como nunca foi estranho nas culturas antigas de qualquer parte do mundo. O senso do sagrado transbordou para a Natureza, atingindo lugares e animais. Si tudo possuía significação transcendente, si tudo estava ligado aos ancestrais, então tudo estava em seu lugar e assim deveria ser preservado. O mundo visto como santuário antecipa entendimento caro aos nossos contemporâneos de consciência ecológica desenvolvida, inda que não teísta. Os maias também elaboraram cálculos dos quais derivaram monumentais construções civis e religiosas. Nos primeiros anos do século XVI, em expedição de reconhecimento na costa da Honduras de hoje, Colombo deparou-se com maias em plena atividade marítima e comercial. O lar principal era a península mexicana de Yucatán.

O período áureo dos astecas foi o menor, indo de 1350 a 1521 apenas. Suspeita-se que maior seria caso os conquistadores, Cortés à frente, não fossem tão eficientes em destruir a civilização em que o aspecto estatal delineou-se mais acentuadamente. O fito da educação, da religião e das guerras era a manutenção do Estado. Os imperadores eram eleitos e submetidos a rituais confirmatórios, entre eles uma guerra demonstrativa de suas habilidades. Não apenas de suas habilidades, mas do merecimento de serem considerados os representantes terrenos do deus Tezcatlipoca. Aparentavam as batalhas ter dois aspectos: o humano, realizado no corpo a corpo dos guerreiros, e o divino, com o apresamento das imagens dos deuses dos perdedores. Todavia, era evitada a morte do oponente, preferindo-se capturá-lo vivo para entregá-lo aos sacrifícios rituais, retomando o cunho sagrado. Pelo que mostra o filme Apokalipto, difícil escolher entre cair na guerra ou ser sacrificado. O holocausto tinha por finalidade retribuir às divindades o que elas teriam feito de si mesmas anteriormente pelos humanos e fortalecer o Sol para ele cumprir sua jornada. Os próprios seres divinos guerreavam entre si, acreditando os astecas que cinco eras decorreram destes confrontos. Um monumento permite entender que quatro já se passaram, e desde o século XIV a humanidade viveria na quinta era, a encerrar-se no ano de 2027. Correu por estes dias a previsão de que o mundo acabaria em 2012. Si não acabar, ganharemos eventual bônus de quinze anos, e assim não desperdiçaremos o esforço em compreender a última reforma ortográfica.

Chegando à América do Sul, encontramos o grande Estado de Tahuantinsuyu, que de 1438 a 1532, ocasião de maior opulência, estendeu-se do norte do Equador ao sul da Argentina e Chile modernos. Eis o reino onde os incas fizeram demonstração prática de "ordem e progresso" avant la lettre, sendo, a despeito dos motins civis, quiçá mais felizes em relação àqueles que portam o dístico no "símbolo augusto da paz". Numa face, a sociedade engendrou paroxismos de hierarquia, reverenciando seus imperadores como filhos do Sol e mantendo com eles, após o desencarne, o mesmo protocolo usado antes. Para os incas, os soberanos não morriam, e apesar da falta de interação, suas múmias participavam das cerimônias reais. Inobstante, não lhe cabe o rótulo de "sociedade primitiva", pois os nobres deveriam merecer, pela educação e pelo preparo para a guerra, a posição ocupada. Como eram mais instruídos, pesava-lhes maior responsabilidade, de forma que eram mais graves as penas aplicadas pelos crimes que cometessem. Saunders cita o adultério: quando um cidadão comum era condenado à pena de tortura, o nobre era condenado à morte. Na outra face, criou uma burocracia útil, na qual cada pessoa tinha sua função ou responsabilidade perante um grupo de trabalhadores. O cerne da organização era o trabalho, e o trabalho voltava-se para a agricultura, esteio econômico inca. Enfim, a habilidade administrativa, adicionada à dosagem entre belicosidade e diplomacia, permitiram a dilatação, mas não foram suficientes para acalmar rebeliões intestinas provocadas por tributários insatisfeitos. No século XVI, Pizarro encontrou o império andino bem prejudicado pela guerra civil o que lhe facilitou a conquista.

Manifestamo-nos acerca do que Saunders escreveu sobre as culturas mais conhecidas. Porém, há diversas a respeito das quais ele disserta, como a nasca, a moche, a wari e a chimú. Apesar de englobadas pelo poderio inca, tiveram respeitadas no geral as práticas culturais ― no sentido amplo ― religiosas e de política interna. Os incas preferiam a anexação diplomática à aquisição bélica, consideração não mantida pelos espanhóis. Entretanto, si a cultura dominante impôs sua presença, não houve extinção plena da cultura dominada. Observando os fatos, reconhecemos a razão do autor quando ele afirma que "embora quinhentos anos tenham se passado, há muitas tradições culturais e religiosas que parecem falar duas línguas ― a católica romana e a pré-colombiana. A prova mais nítida da assertiva encontramos na peça composta pelo argentino Ariel Ramirez, mui oportunamente nomeada Missa Criolla. Ao contrário da conotação pejorativa corrente no Brasil, "crioulo" nada mais significa que a língua ou cultura derivada do contato de uma língua ou cultura europeia com as nativas. A composição de Ramirez obteve grande efeito e aceitação na década de sessenta do século passado. À liturgia básica formada pelo Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e pelo Agnus Dei, o compositor conciliou temas musicais inspirados nos ritmos folclóricos do Peru, da Bolívia, da Argentina e do Chile. Além disso, incluiu na orquestra instrumentos de percussão e sopro típicos da cultura hispano-andina, como a quena e a siku (espécies de flautas) e chamar a atenção para um tipo de violão chamado charango, bem destacado na abertura do Gloria. Tudo bem pesado e medido, forma um conjunto raro e empolgante.

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 27/4/2009

 

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