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Segunda-feira, 4/5/2009
Literatura e infância
Pilar Fazito

Ou In the box and dreaming...

Não consigo esquecer a expressão de alívio de um amigo no dia em que me apresentou sua nova morada, há alguns anos. Ele, finalmente, havia saído da casa dos pais e estava montando aquilo que, em breve, chamaria de seu lar. Com a expressão de alívio, vieram as palavras "se eu soubesse que crescer era tão bom, tinha dado um jeito de fazer isso antes". Desde então, a frase bate aqui na cachola, vez por outra, toda vez que vejo crianças adquirindo seus traumas inadvertidamente e sempre que me lembro dos meus.

Casimiro de Abreu cantou os versos de sua infância querida, na aurora da vida que os anos não trazem mais e, depois disso, o saudosismo do estilo romântico virou quase uma lei na evocação das primeiras memórias. Mas eu nunca consegui me identificar com esses versos. É que, depois dos 4 anos, minha infância virou uma sucessão de episódios odiáveis que me faziam pensar em uma única coisa: fechar os olhos e crescer o mais rápido possível.

Eu sonhava em ser como o Pequeno Polegar para passar despercebida das chateações escolares. Ou ao menos ser como aquelas crianças que são tão iguais e comuns que somem em meio umas às outras. Queria ser franzina, ter cabelo liso e preto, ficar quietinha no fundo da sala sem que ninguém percebesse que eu existia. Mas não tinha jeito, eu era o oposto e chamava a atenção. Seja porque era grande e corpulenta, ou porque tinha um nome incomum, ou ainda por causa dos cabelos anelados que cresciam volumosos feito os da Simone, na década de 1980... Eu era um prato cheio para as piadas infantis. Para piorar a situação, dos 4 aos 8 anos, mudei de escola 4 vezes. E isso numa cidade estranha, que não era aquela em que eu havia nascido. Ali não moravam os meus avós, nem os tios ou primos; não havia Avenida Dom Pedro II, nem a sorveteria da Kibon que ficava na esquina, onde meu pai nos levava para tomar um sundae nos dias chuvosos.

Logo entendi o significado do termo "saco-de-pancadas" e, apesar do tamanho, qualidade que me permitia reduzir a pó qualquer um daqueles meus colegas pirralhos, eu era uma criatura tão pacata e amigável feito o touro Ferdinando. Eu não sabia brigar e ninguém me ensinou a me defender. O resultado era essa vontade louca de tomar um "chá de sumiço", de virar um ser invisível, e a consolidação do meu fetiche por caixas. Caixas de todos os tamanhos. Quando bebê, ficava irritada e gritava a plenos pulmões por não conseguir entrar em caixas de sapato. Eu punha o traseiro dentro e as pernas ficavam de fora. Punha as pernas e o traseiro é que saía da caixa. Então, me arrumaram uma caixa maior e eu pude fazer dela o meu cafofo, o meu ninho, o meu bunker. Recortei janelas porque, embora eu gostasse da proteção e da estabilidade das caixas, não queria viver enclausurada. A aurora da minha vida deixou de ser querida aos 4 anos. Eu gostava dos poemas infantis da Cecília Meireles e, na escola, borboleteávamos com as cores de Vinicius de Moraes ― fora dela, ele continuava nos contando histórias em sua Arca de Noé. Eu realmente gostava de tudo isso, mas já percebia que aquela poesia toda dos livros não fazia parte do meu mundo real. Cecília Meireles e Vinicius de Moraes não pareciam ter sofrido chacotas na infância e, portanto, não deviam ter muita noção do que diziam. Ainda assim, o mundo deles era mais bonito do que o meu.

Então, da vontade de querer entrar em caixas eu passei para o desejo de entrar nas histórias. Eu queria entrar na tela da TV e salvar o simpático e feioso gigante ciclope da Fúria de Titãs, queria entrar nos livros e saber o que acontecia depois do "foram felizes para sempre" ― ninguém nunca havia me dito como era ser feliz para sempre.

Quando uma história era boa, eu não gostava de saber que ela estava destinada a acabar. Por isso, talvez, li mais de três vezes O menino do dedo verde, imaginando que eu poderia entrar no livro e subir a escada de plantas que levava ao céu. Aos oito ou dez anos, não me lembro ao certo, li A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector. Como diz o Mia Couto, aquilo representou um "terremoto" na minha curta existência. Fiquei tão impressionada e me identifiquei tanto com a narrativa que me pus a escrever uma carta para a autora, ignorando que teria que recorrer a um centro espírita para fazê-la chegar à destinatária. Eu tinha tanta coisa para dizer a Clarice... De repente eu tinha achado alguém que também havia matado peixes sem querer e que se mortificava de culpa por isso, alguém que conhecia um Dilermando, alguém que gostava de cães e que escrevia.

Eu gostava de escrever e, depois disso, encasquetei que queria ser como ela, eu queria ser escritora. Minha mãe deve ter visto minha empolgação e não teve coragem de me contar que a autora já havia morrido, então, disse que enviaria para a editora a fim de que a carta fosse encaminhada a ela. Confesso que fiquei meio chateada com a falta de resposta, mas perdoei Clarice depois que soube de sua morte. Fazer o quê, se essa gente boa não espera a gente crescer?

Depois vieram os irmãos Grimm, As aventuras do Barão do Münchausen, a Coleção Vagalume e outros tantos. Mais tarde, já na adolescência, descobri Graciliano Ramos. Foi identificação à primeira linha. Finalmente alguém retratava a tenra idade de um modo mais realista, lembrando que nem tudo eram flores. No seu Infância ― um dos mais belos livros já escritos em língua portuguesa ―, a gente não vê a hora de o protagonista crescer e acabar logo com aquele sofrimento todo.

Mas eu estava crescendo e, ao contrário do que imaginava, o tormento só piorava com a adolescência. Então, adotei a estratégia de sobrevivência social de todo adolescente e adaptei a técnica do "bata primeiro, antes que batam em você". Bater, eu não batia, porque não sabia. Mas rosnar era comigo mesmo.

A gente cresce e finge que é normal: a casca endurece até virar uma espécie de caixa de papelão bem resistente, mas do lado de dentro a história ainda é singela, a gente se emociona com propaganda de sabão em pó e a nossa manteiga continua derretida. Nessa época, eu já sabia que não podia entrar nas histórias, mas não me dei por vencida: fiz com que elas entrassem na minha caixa. Dentro dela, voei de balão com O Barão nas árvores, do Ítalo Calvino, até que a realidade me fez fechar a contra-capa do livro ― e, aí, sim, alguém deve ter visto, do lado de fora, minha caixa se debulhando em lágrimas.

Eu já nem era mais gente pequena quando topei com as infâncias do Manoel de Barros e fiz as pazes com a minha. Como passei tanto tempo sem respirar as comoventes palavras do fraseador eu realmente não sei. Logo eu, que também queria escovar palavras. Ano passado, descobri a meninice do irlandês Frank McCourt, por quem também me apaixonei perdidamente à primeira linha. As cinzas de Ângela me fizeram evocar outro terremoto em minha vida, quando assisti, ainda adolescente, a Adeus, meninos, do diretor Louis Malle. O filme bateu de um jeito cá dentro que eu queria entrar na tela e ajudar aqueles garotos a esconderem o colega judeu e dar um jeito de apartar as brigas nos recreios do internato. Eu queria dizer umas verdades para aqueles professores e traçar um plano de fuga para todos os meus colegas imaginários ― mais camaradas do que os que eu tinha no mundo real. Juntos, abandonaríamos aquela instituição repressora e iríamos para a Austrália, onde eu sabia que pulavam cangurus ― um bicho tão simpático que estampava um selo da minha reduzidíssima coleção ―, ou para algum lugar ensolarado, bem longe da Segunda Guerra.

Depois que o tormento passa, a gente começa a ver o lado bom das coisas. A partir dos 16 anos, mais ou menos, a coisa começou a melhorar e eu fui abandonando a caixa aos poucos, mas não a literatura e os filmes que retratam o tema infantil. Foram eles que me ajudaram a sobreviver àquele período permeado de sentimentos extremamente frágeis e sensíveis, que qualquer peteleco rude ou patada adulta é capaz de desmoronar.

Hoje, não sei se eu concordo com a frase do meu amigo. A gente tem mania de nunca querer estar onde de fato está. Prefiro achar que aprendemos de tudo nesta vida, inclusive a brigar e a nos defender. Com o tempo vemos que o perigo maior não é apanhar dos outros ou ser ridicularizado, mas deixar que isso nos endureça a ponto de matar a nossa capacidade imaginativa. Ainda bem que as histórias existem. As histórias e as crianças.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 4/5/2009

 

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