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Sexta-feira, 15/5/2009 Cultura, gelo e limão Marta Barcellos Uma grande empresa de produtos de limpeza destinava boa parte de sua verba para entender os consumidores. Ou seja, gastava rios de dinheiro com pesquisas de opinião, consultores, publicitários. Nada, porém, teve tanto impacto para o presidente da companhia como o dia em que ele próprio resolveu espiar o comportamento de um comprador em um supermercado chique de São Paulo. Fingindo distração, ele observou um homem maduro, com o carrinho repleto de vinhos caros, comparando os preços dos limpadores multiuso. A diferença era de centavos, mesmo assim o sujeito se deu ao trabalho de escolher o mais barato, preterindo a marca da tal empresa. O executivo não escondia sua indignação quando me contou o episódio. Que lógica havia no comportamento de alguém que esbanjava R$ 100,00 em uma garrafa de bebida, sem pestanejar, e "compensava" isso economizando centavos que não somariam R$ 1,00 nas gôndolas de produtos de limpeza? Nenhuma, claro. É bobagem cobrar coerência desse consumidor. Ou de qualquer outro: a mulher que se endivida por uma bolsa de grife, o rico que compra DVD em camelô, o adolescente que paga R$ 100,00 para assistir ao show de seu artista favorito de binóculo, mas não aceita pagar R$ 1,00 para baixar as suas músicas na internet. Comparar consumo cultural com a compra no supermercado pode parecer desbaratado, mas não é. Somos igualmente irracionais, movidos por sentimentos inconfessáveis até para o analista, na hora de atribuir valor às coisas. Aliás, a hora, assim como o lugar, é algo que pode fazer toda a diferença. Em um café charmoso, uma pessoa aceita pagar três vezes mais por 237 mililitros de Coca-Cola, que vem numa embalagem de vidro apelidada de Mae West, numa alusão às curvas da atriz americana. No supermercado, espera por uma promoção para a garrafa de 2 litros. O líquido preto, emblemático da nossa sociedade de consumo, é o mesmo. A indústria cultural, sob o impacto das novas tecnologias, busca hoje acima de tudo a sobrevivência. Os profetas do apocalipse aproveitam para avisar que o fim está próximo: começará pelo CD, passará pelos jornais, chegará ao livro e ao cinema, arrastando também a TV e as rádios. A lógica é que a internet e as novas formas de distribuição dos produtos culturais vão eliminar as antigas "embalagens", e mudar para sempre a nossa forma de consumir músicas, filmes, narrativas, arte. Sobreviverá, na indústria, quem conseguir se antecipar às tendências e descobrir formas de se financiar a criação cultural neste novo contexto. Pode ser. Mas talvez devêssemos pensar na Coca-Cola, que há tempos adotou a estratégia de segmentar e diversificar suas embalagens. Se um mesmo consumidor age de forma diferente dependendo da ocasião, imagine as possibilidades para se vender refrigerante por aí. E se os livros/narrativas forem como Coca-Cola? Tratando-se do inescrutável consumidor, vale observar um exemplo específico, como fez o presidente da empresa no supermercado. Sou uma leitora de livros que lê cada vez mais no computador. Mas não pretendo abandonar meus livros! Consigo imaginar-me, por exemplo, comprando um romance, numa livraria linda como a Travessa, do Rio, quem sabe depois de um desses eventos regados a tacinhas de vinho, apesar de o mesmíssimo texto estar disponível no meu Kindle, por um clique e alguns centavos. Não, ainda não tenho um desses leitores eletrônicos, mas pretendo comprar quando o preço for acessível - para viajar, para carregar na bolsa, para ter uma experiência diferente, para descobrir o que dá para ler ali. A narrativa do livro será exatamente a mesma, como o líquido de Coca-Cola. O livro poderá ter uma capa elegante, quem sabe o autógrafo que consegui do autor naquela noite tão agradável. Já o texto no Kindle vai oferecer-me uma busca ao dicionário, talvez alguns links interessantes. Acharei engraçado quando perceber que comprei determinado livro, que adoro ter na estante, mas na prática o li no leitor eletrônico, durante uma viagem. Não me cobrem coerência, sou apenas uma consumidora! Eu podia estar comprando bolsas de grife, vinhos caros, mas estou apenas comprando livros que ficam fechados na estante, que mal há nisso? Tenho amigos que há anos não vão ao cinema. São devoradores de DVDs nos fins de semana. Particularmente, não consigo entender como eles desprezam um dos programas mais sensacionais que eu conheço. Também vejo filmes na tela da sala, que hoje é da TV e provavelmente será a do computador, mas não dispenso um cineminha por nada no mundo. Dá para baixar o filme do Oscar de graça no computador? Ótimo, bom proveito, digo ao meu interlocutor. Mas é como se nossas experiências fossem completamente diferentes, nem vou querer trocar impressões sobre o filme com ele. Essa sou eu, consumidora cultural com minha lógica própria, que também recebo olhares de espanto quando revelo não ter um iPod. Estou certa de que as oportunidades para quem produz e vende cultura são muitas. As pessoas precisam hoje, mais do que nunca, de experiências reais e pontos de encontro, até para compensar as horas de navegação na internet. Nenhuma afinidade será maior, para promover esse encontro, do que gostar da mesma música, do mesmo livro ou do mesmo filme. E elas pagarão muito por isso, mesmo que diante do computador jamais recorram ao cartão de crédito. Acho que livrarias e cinemas que oferecem este tipo de convivência, por exemplo, terão sobrevivência garantida nas grandes cidades. Pelo menos no que depender de mim, do meu consumo e da minha torcida. Nota do Editor Marta Barcellos mantém o blog Espuminha de leite. Leia também "Fugindo do apocalipse". Marta Barcellos |
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