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Sexta-feira, 12/6/2009
Escrever? Quantas linhas?
Ana Elisa Ribeiro

Qual foi o maior texto que você já escreveu em toda a sua vida? Lembrou? E então? Ele passa das duas páginas? Se passa, parabéns, você é alguém que experimentou muito mais, em relação à escrita, do que a maioria absoluta das pessoas. E o que isso quer dizer? Não sei. Que você talvez tenha o que dizer, embora essa relação não seja direta. Ou que você pode ousar mais. Ou que você provavelmente fez uma monografia de bacharelado. Ou que produziu um bom relatório de final de curso. Talvez queira dizer que seu professor de língua era um bamba. Ou que você curte escrever muito além da média das pessoas. Ou ainda que você é um privilegiado.

Um editor da virada do século disse em e-mail: "é dureza publicar livros nesta meca de analfabetos". Preconceitos à parte, o cara tinha razão para se preocupar. Ou não? De repente, a "meca" à qual ele se refere não lê e nem escreve. Pelo menos não o ideal ou o suficiente. Um professor de jornalismo surtava em sala de aula e, aos brados, acusava os alunos de "não saberem ler". Frise-se que eram alunos de jornalismo. No entanto, talvez isso se aplique a todos os demais cursos do planeta, em qualquer lugar do mundo. Ou será que virão defender que o Brasil é pior do que os outros? (Porque este tem sido nosso discurso e também, em última análise, o que sobra dos resultados dos testes de eficácia aplicados a torto e a direito. Ah, se vocês vissem a moça da Unicamp interpretando esses testes, seria tão esclarecedor...).

Você se lembra de quando tirou nota alta em redação? Lembra de ganhar algum prêmio pela boa escrita? Ou mesmo do reconhecimento, mesmo que "torto", em relação a algo que tenha escrito? E quanto àquele texto grandão? Em que situação e sob que condições o escreveu? Já ouviu alguém reclamar de fazer uma monografia? Do quanto é dolorido e sofrido? Ai, que preguiça. Atualmente, ao menos em Minas Gerais, é bem comum que os cursos de especialização substituam as antigas monografias (que eram meio estéreis e dificilmente circulavam) por artigos. Que implicações isso parece ter? Alguns vão dizer que a exigência caiu e que os alunos escreverão bem menos, sendo portanto mais fácil "comprar" um certificado de especialista em qualquer coisa. Outros, com os quais concordo, vão dizer que os alunos vão escrever um artigo de quinze ou vinte páginas e que o farão para apresentarem em algum lugar, para um leitor de verdade. Pelo menos uma parte desses trabalhos pode encontrar pouso nos olhos de alguém que não seja o professor. Pois bem: o sofrimento não diminuiu em nada. As pessoas, em geral, sofrem muito para escrever quinze páginas. Em geral, vêm de escolas (tanto faz se públicas ou privadas, frise-se) que tratam o texto pelo número de linhas, não pelo de laudas. É comum que se escrevam textos sem que se tenha lido bastante antes. E é também comum que se confunda referencial teórico com revisão bibliográfica. E que se confunda método com desenvolvimento de qualquer coisa. Enfim, o texto precisa ter fôlego, tanto em relação ao tamanho quanto em relação às ideias.

Quem fez monografia sofreu um pouquinho. Quem faz mestrado sofre um pouco mais. Quem faz doutorado quase não sente dor. Depois das primeiras trezentas páginas, artigo parece piada, o que não dispensa que se procure a qualidade. No entanto, a maior parte das pessoas vai escrever pouco e, normalmente, não vai ultrapassar as vinte linhas. É claro que doutorados e mestrados não são obrigação e nem gosto de todo mundo, óbvio, certo? A maior parte das profissões até impede que se tenha tempo para escrever ou mesmo a escrita lhes é marginal em relação a outras tarefas. Normal, claro. O que ocorre de ruim é quando as profissões têm a escrita como uma atividade central e as pessoas que as desempenham não se tocam disso. E não me refiro a qualidades gramaticais que qualquer F7 pode resolver. Refiro-me à densidade do texto, à articulação interna etc.

E o leitor? O que fazer com ele? O que fizemos dele? Mal, mal consegue passar da superfície. Não consegue reelaborar o que leu e muito menos discutir com pertinência o que lhe foi oferecido. Vira e mexe, aqui no Digestivo mesmo, ocorrem os ataques de leitores que leem com armas em riste, como se toda argumentação explicitada fosse uma cruzada pessoal contra sabe-se lá o quê. Leitores que veem no posicionamento do cronista um mero "falar mal" direcionado ou um "denegrir" gratuito. Leitores que não sabem sequer o contexto do que leem e a articulação disso com o que mais ocorre, inclusive a eles. Não sabem, por outro lado, se aproximar, conversar, trocar ideias, abordar um cronista (que, bem ou mal, conquistou este espaço) ou aproveitar o ensejo para colaborar de forma inteligente. Essas confusões são típicas de quem confunde autor com narrador, ator com personagem, de quem bate no Jackson Antunes na rua porque ele fez papel de machão na novela das oito.

Quando foi que você leu um livro pela última vez? E que teor ele tinha? Conversou com alguém a respeito? Quando foi que você participou de uma reunião em que as pessoas discutem aspectos de uma ideia? Quando foi que escreveu algo provocado pelo que lia? E sua abordagem foi interessante? Iniciou um diálogo inteligente com alguém? Tomara que sim. E tomara que aumentem as oportunidades que temos de escrever, principalmente de escrever textos que merecem ser lidos e discutidos. A recompensa do texto é ele encontrar leitores. A graça do autor é saber uma resposta bem-disposta à provocação escrita e, quem sabe, conhecer outros leitores capazes da autoria.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 12/6/2009

 

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