Quinta-feira, 28/5/2009
Polly
Elisa Andrade Buzzo
polly havia se tornado sua vida, ou melhor, sua sobrevivência dependia das escolhas dela, do tempo que seus dentes levariam para transformar o almoço numa pasta indefinida, do tempo que sua língua a deglutiria, do tempo duração e do tempo desejo e esquecimento, do tempo que seus passos levariam para chegar ao metrô e que ela desistisse de sair do vagão para pegar o outro trem que passava na direção contrária, por ser o novo modelo com as portas largas, revestimento verde-água e menos lugares para se sentar, a distração na hora de escolher a saída mais próxima, o farol fechado aos pedestres no instante exato em que polly irromperia aos prantos se pudesse chorar, dali pra frente a vida seria em marcha lenta, como o tempo desejável do amor e estendido da angústia de não ser mais amado tem uma duração indefinida quando as coisas já passaram, ela não lembrava mais do grito estridente que sua garganta poderia oferecer para surpresa de quem passava, pois se um transeunte fosse atropelado, era verdade, haveria gente em volta e ambulância, mas pobre, pobre polly, apodreceria anônima na multidão até o momento em que sua dona irrompesse do prédio, a tomaria em seus braços e reconheceria seu corpo sem pouco pânico, desafiando as leis da física e de trânsito, polly, polimórfica, se transformou em carro, carne, ônibus, moto, foto, atravessou estações e evaporou na avenida, haveria outras maneiras de contar como polly não fora atropelada, dependendo do ângulo de visão e do histórico pessoal de sensibilidades, como o do motoqueiro que desviou radicalmente sua trajetória para não passar a roda por cima de seu pequeno corpo conturbado, ou do motorista que teve a coragem de desacelerar sob a pena de uma derrapagem, os motoboys falam da história do animal com entusiasmo e sabem da dor da perda, os taxistas que viram a cena num ponto distante e não fizeram nada, quando alguém pergunta sobre o destino de polly, há muita conversa e pouca ação, pois polly simplesmente não tivera o privilégio de fazer parte de seu campo de visão, sem quem tivesse ânimo para juntar as peças, correr atrás da imprevisibilidade de um encontro, à la sherlock holmes ela farejou sua trajetória, ponderou a baixa probabilidade dela ter sobrevivido, assim como a possibilidade de encontrá-la num rasgo temporal, estremecida e ardente no recôndito tranquilo da rampa de acesso do supermercado vazio, na invisibilidade dos mendigos e pedintes, sabe-se lá se polly, sem coleira nem rabo, uma escoriação no olho e a pata traseira manca levara uns pontapés no traseiro enquanto percorria o périplo paulista-maria figueiredo-santos, rasteira aos taxímetros e a qualquer outro enquadramento de tempo e espaço, circulavam no imponderável, como no dia em que descendo as escadas a imagem dele ficara latente e cabisbaixa, um cruzamento em que não houve de fato um atropelamento, apenas um leve esbarrão, que é do sutil que o grande se dimensiona, cada movimento estaca do tempo, uma escolha que não se escolhe, momento fera, polly não deixaria que a tocasse para levá-la para casa, já ele a levaria para casa e a tocaria, não sem antes avisar dos perigos, mas quando a fuga acontece os passos são incontroláveis, polly correu sem direção, atravessou a rua, havia o fogo do desespero em seus olhos, correu sem noção dos perigos, ponto marrom na avenida, se ela era a única a poder montar as peças deste quebra-cabeças, interrompeu o sentido, retornou, não se deixou levar pela corrente, pela velocidade da vida em geral, polly, prioridade, polly não chegou a cruzar a avenida, sentiu as consequências inalteráveis do deslocamento, não sem relutar, ela, por sua vez deixou-se entregar na passagem da fronteira, havia uma luz nos olhos dele, aquela luz amedrontadora que de repente se acende nos apaixonados, mas que se apaga deixando polifonias, o castanho melancólico da dúvida, até quando o fato vivido no passado se mantém cristalizado, longe das impurezas do dia a dia, o final de contos de fadas ao menos para polly, lentamente, em direção aos braços da dona, até que, levando-a à masmorra, não pôde escapar de sua mordida por trás da grades.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 28/5/2009
|