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Terça-feira, 2/6/2009 10 palavrões 1 livro didático e ninguém no governo Diogo Salles Arte sobre capa por Diogo Salles O time está perdendo o campeonato. Precisa desesperadamente de um gol para levar a decisão para os pênaltis. O adversário faz cera, gasta o tempo, catimba o quanto pode. O time está cada vez mais nervoso, afobado. Os laterais nem se preocupam mais em chegar à linha de fundo. Cruzam bolas e mais bolas na área em busca de um cabeceio salvador. Já estamos nos descontos e o craque do time insiste em prender a bola, em fazer firulas e mostrar por que ele é titular da seleção brasileira. O técnico precisa tomar uma atitude. O que ele faz? 1) Anda calmamente até a beirada do campo e pede, pausada e educadamente ao jogador: "Desculpe incomodar, mas gostaria de pedir ao senhor que passe a bola ao seu companheiro mais bem-colocado. Muito obrigado". 2) Corre até a beira do gramado (quase invadindo o campo) e berra: "Caralho! Passa a bola, seu fominha filho da puta!" Não há registros de que tenha existido alguém tão obsequioso como esse técnico imaginário da opção 1. E olha que, no futebol (especialmente no brasileiro), já aconteceu de tudo. Gandulas invadindo o campo e impedindo gols do adversário, jogador recebendo dois cartões amarelos no mesmo jogo, teve até juiz fazendo gol... Não dá pra imaginar que qualquer boleiro ou torcedor jamais tenha ouvido (ou dito) um palavrão num jogo. Quem nunca mandou o bandeirinha tomar no cú por causa daquele impedimento mal-marcado? É por isso que as mães dos árbitros se tornaram as figuras mais lembradas dentro de um estádio. Quem já foi a um jogo sabe muito bem do que estou falando: o palavrão, no calor jogo, é inevitável. Causou polêmica aqui em São Paulo a atitude da Secretaria de Educação do Estado de distribuir, para alunos da 3ª série, o livro Dez na área, um na banheira e ninguém no gol (Via Lettera, 2002, 112 págs.). O livro é uma compilação de HQs (histórias em quadrinhos) e foi organizado por Orlando Pedroso, ilustrador da Folha de S. Paulo. Lançado às vésperas da Copa de 2002, contou com cartunistas premiados como Allan Sieber, Spacca, Osvaldo, Custódio, Fábio Moon e Gabriel Bá. Com um timaço desses, era improvável que o livro se tornasse uma cartilha politicamente correta. Curioso é que, já no prefácio, o ex-craque e atual cronista Tostão deixa a dúvida no ar: "Faltava uma obra como essa para crianças e adultos". Logo na primeira história, Lélis ambienta um clássico jogado no presídio. E não demoraria muito para acusarem o livro de "fazer apologia ao PCC". Mais para frente, Caco Galhardo satiriza as mesas redondas, misturando futebol com "piadas de conotação sexual", como foram classificadas. De fato, não é mesmo um livro adequado para crianças de 9 anos. Para o público adolescente, porém, é uma ótima leitura. Mas falemos disso mais tarde. O tratamento que a mídia deu a esse episódio foi um caso à parte. Quando saiu a notícia, seria o mínimo esperar que entrevistassem o responsável pela publicação ou alguém da Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB), certo? Nada disso, partiram logo para a caça às bruxas. E não demoraria muito para vermos alguns dos cartunistas que colaboraram no livro dando entrevistas e tendo de explicar um dano que eles nem sequer causaram. Foi patético ver gente como Ratinho criticando o livro ― logo ele, que nunca economizou em baixarias em horário nobre na TV. Se boa parte da imprensa foi míope ao cobrir o assunto, o mesmo não podemos dizer do Blog dos Quadrinhos, que teve equilíbrio, ponderou ambos os lados e, principalmente, não enxerga o quadrinho de uma forma depreciativa e infantilizada. Em meio a tanta controvérsia, um consenso surge entre as discordâncias: a Secretaria de Educação foi infeliz na escolha do livro. É fato que quem escolheu o livro, não o leu. Desculpem a pergunta, mas seria plausível dizer que muitos outros livros escolhidos também não tenham sido lidos? Ou será que rola um jabá nas secretarias dos governos? De qualquer maneira, é muito mais fácil culpar os quadrinistas pelo conteúdo "profano" do livro do que assumir qualquer responsabilidade por mais esse erro crasso. Se tem alguma coisa que foi mesmo "um horror" e "de muito mau gosto", foi o diálogo entre a jornalista Carla Vilhena e governador José Serra no SPTV. É até estranho lembrar que quando eu era moleque (lá nos jurássicos anos 80), eu jogava bola na rua, colecionava figurinha e lia gibis do Mauricio de Sousa. As opções eram bem mais limitadas. Hoje a molecada está muito mais antenada nas tecnologias ― e, por isso mesmo, mais distante dos livros. Com a internet há muito mais acesso à informação e mais opções de entretenimento, com games, jogos on-line, celulares, redes sociais, vídeos no YouTube. Se aos 12 anos eu já via filmes pornô e só desenhava coisas pornográficas durante as aulas, é muito pouco provável que a garotada de hoje não faça nada parecido (isso se não fizerem pior). Mais estranho ainda é que, logo aqui, em pleno país da bunda, a sociedade se escandalize com a leitura do Dez na área, mas não reclame de participantes de reality shows façam uma "sessão privê" para que os assinantes do pay-per-view assistam tudo, sem cortes, ao lado de suas famílias. E quanto a esses programas de TV e músicas popularescas, não têm nenhuma conotação sexual? Prefiro mil vezes ver crianças lendo Dez na área do que vê-las descer "na boquinha da garrafa" ou "ficando atoladinhas". Quer saber? Talvez seja melhor mesmo levar as crianças para a igreja, para que rezem mais e fiquem longe das perversões desses quadrinistas (ardam no inferno, seus tarados!). Se forem corretamente catequizadas, aprenderão logo cedo sobre o não-uso da camisinha e poderão engravidar e ter filhos antes mesmo de chegar à puberdade. Só não se esqueçam de esconder da criançada todos os crimes praticados pela igreja, senão elas vão achar que a pedofilia também é uma coisa normal. Tudo bem que estou um pouco velho para isso, mas eu consigo me ver com 15 anos lendo Dez na área. E, se eu tivesse um filho adolescente, recomendaria a leitura sem problema. Lembro que, no primeiro colegial, tive de ler Dom Casmurro para depois fazer uma prova a respeito. Por muitos anos, a única memória que ficou gravada é que uma menina que sentava perto de mim tinha anotado em sua agenda "Prova: Domcas Murro". Quando tive de ler Machado de Assis na marra, aquilo me marcou negativamente. Para mim, era mais uma lição de casa, chata e obrigatória como todas as outras. O resultado não poderia ter sido mais desastroso. E só agora, quase vinte anos depois, estou podendo reparar esse erro. Acho que eu não estava preparado para Machado de Assis ― não daquele jeito. Claro que todos nós devemos ler e conhecer os cânones, mas enfiar literatura goela abaixo não resolve o problema (não resolveu para mim). Que me perdoem os ortodoxos, mas já passou da hora de reconhecer que esse método de ensino está falido, a começar pelo processo de seleção das bibliotecas (se é que existe mesmo algum). Já passou da hora também de enxergar as HQs de forma menos paternalista. Pode-se argumentar que os quadrinhos são "cultura de massa" ― o que é verdade ―, mas não podemos esquecer que eles também podem ser literatura. A cada dia chegam ao mercado novas adaptações literárias ― as últimas são O pagador de promessas e Jubiabá. Basta escolher com cuidado. Como fazer crianças e adolescentes se interessarem por livros? Essa é a grande pergunta. Talvez apostar e investir mais em graphic novels de grandes autores seja mesmo o caminho. Deixar de lado o falso moralismo também vai ajudar muito. Demorou um pouco, mas a adaptação de O Alienista entrou enfim para o PNBE e certamente será uma maneira muito mais palatável de introduzir Machado de Assis à garotada. O que sabemos é que se insistirem nessa teoria engessada de aplicar provas sobre livros, vão continuar perdendo de goleada para a internet e para o videogame (aliás, esse método é tão anacrônico que já caiu para a segunda divisão há muito tempo). Para encerrar, tomo aqui a liberdade para recomendar a você, leitor (e aos adolescentes) o livro Dez na área, um na banheira e ninguém no gol ― com certeza, uma leitura "ducaralho". Diogo Salles |
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