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Terça-feira, 28/7/2009 Como eu escrevo Jardel Dias Cavalcanti Desde que me entendo por gente, meu sonho é o de ser escritor. Ser escritor não quer dizer apenas ser autor de romances, contos, poesia, mas de qualquer tipo de texto. Desde que haja interesse sobre determinado assunto, me causa prazer escrever sobre ele. Pode ser sobre filosofia, história, ciência, artes, entretenimento etc. O que me move é o prazer da construção do texto (mesmo que seja, antes, paradoxalmente, determinado pelo interesse que um tema me causa). Ver o texto pronto, acabado, como uma pequena obra de arte é o meu desejo máximo. Mas para ao menos tentar chegar a isso é preciso um conjunto de coisas que relatarei a seguir. Para querer ser escritor, antes é necessário desejar ser um bom leitor. Se não há leitura, não há nem repertório vocabular para se escrever razoavelmente bem. E muito menos se terá estilo. E ler, não poucas coisas, mas muitas, de várias áreas, desde um livro sobre a Teoria da Relatividade, como outro sobre culinária, sendo que do meu ponto de vista ler romances é imbatível. Não há leitura mais refinada, mais profunda, mais enriquecedora do que a de obras literárias, para quem quer escrever bem. Passar pelos volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, para ficar apenas num exemplo, é tornar-se outro ser humano não só no sentido da transformação existencial que a arte proporciona, mas é tornar-se vocabularmente e estilisticamente mais sofisticado. Outra coisa: desconfio que leitores obcecados apenas por poesia e que deixam de lado leituras de romances tornam-se péssimos escritores de textos. Eles acabam escrevendo muito mal, pois lhes falta riqueza vocabular. São, claro, capazes de grandes sínteses, típicas dos poetas, mas para textos longos são um fracasso, como observei em várias pessoas. E leitores de livros científicos, sejam de história, critica literária, sociologia, ciências físicas e biológicas, por não se deixarem contaminar pela estilística sutil dos romances, tornam-se também limitados, com a imaginação quase que castrada por pragmatismos verbais ineficientes. Ler apenas textos científicos, como disse Schopenhauer, é como ler um livro de receitas deliciosas quando se está com fome. Outro ponto sobre o ato de escrever é que busco fazer do texto uma obra de arquitetura. É claro para mim que escrever é como compor uma sinfonia (agora, se ela é tonal, atonal, minimalista, expressionista, cubista, realista etc., depende do seu estilo ― e "o estilo é o homem", é a soma de tudo que você é). Portanto, variações de humor, pontos de vista próprios e de outros, força ou delicadeza em dizer algo, tudo deve se submeter à ideia de uma pequena estrutura viva. A mente do leitor deve ser movida não só pelo tema, mas pela energia invisível, mas que está ali, das sutilezas estilísticas que traduzem muito do que o autor quer dizer. E é ali que ele diz bem. Um texto parte de um assunto e o autor deve por ele ser consumido antes de escrever. Faço isso. Procuro saber o máximo sobre o problema antes de escrever sobre ele. Aproximo-me, não servilmente, do que os outros já falaram sobre determinada questão, depois a modifico à luz de interesses absolutamente particulares e muitas vezes inconscientes. Respeito as conclusões dos outros, adoto várias delas, mas tento ao mesmo tempo inserir algo de mim nesse novo ser que vai surgir. Se for escrever sobre música, por exemplo, leio sobre o artista o que puder, de sua biografia a aspectos técnicos de sua arte, para depois mergulhar silenciosamente na própria música e escutar o que ela está dizendo, pois ela diz muito e melhor que qualquer outra pessoa o que ela é. Os melhores comentadores de arte são aqueles que ouvem não somente a tradição crítica, mas que ouvem a obra como a melhor comentadora de si mesma. Ou seja, os que provam do bolo, não apenas os que leem a receita. Um texto nasce como uma mistura de esboços e achados prontos. Pode-se corrigir algo duramente construído, como pode-se deixar intacto o que nasce como uma ideia perfeita. Ao longo de sua construção uma ideia pronta pode também ser por uma nova removida ou mesmo alterada. O conjunto do texto nos obriga muitas vezes a ceder aqui e ali, alterando, renovando, reforçando, refazendo uma ideia que antes era perfeita mas que tornou-se problemática dentro do contexto total do texto. Ela sofre à torto e direito nas nossas mãos como sofremos nas suas mãos. No meu caso, quando sento pra escrever, boa parte do texto já está escrita dentro da minha cabeça. Andei pra lá e pra cá, na padaria, no mercado, na sala de aula, no trânsito (poetas são perigosos ao volante por isso), com ele sendo lentamente fabricado ao longo do dia. Tendo boa parte da matéria mastigada, passo a redigir o que a memória computou. Alguns buracos aparecem, mas em geral quase tudo é recuperado. Ao menos a parte essencial, na qual é agregada outros elementos. Mas o grosso está a salvo. O momento de escrever é interessante. Pode variar a hora. Pela manhã ou pela noite, pois à tarde nada funciona em mim a não ser leitura, ouvir música, ver filmes ou arrumar a casa. Às vezes é preciso um café ou apenas um cigarro para disparar o gatilho da escrita (sou fumante ocasional e odeio beijar bocas com gosto de cigarro, mas respeito o direito dos fumantes e acho estético o ato de se levar um cigarro à boca e ver expelida a fumaça graciosamente). Outras vezes uma provocação me leva a escrever: ler uma frase invejável num livro e dizer para mim mesmo que preciso escrever como esse sujeito ou melhor que ele. Sempre releio o máximo que posso tudo que escrevo. Daí uma compulsão pela correção. O texto tem que ser escrito como algo que eu gostaria de ler em outros autores. Tenho que sentir prazer na leitura de mim mesmo, senão acho que fracassei. Um texto sobre cultura tem que ter um valor além do simples fato de informar. Deve ser aquilo que Roland Barthes chamava de "texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, que desconforta, faz vacilar as bases culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem" (O prazer do texto). Toda a movimentação interna dos meus textos, sua composição, está alerta para isso. Sei que melhoro a minha escrita na medida em que leio mais e mais. Não há melhor escola para escritores, de que gênero for, do que ler excelentes autores de literatura. Desconfio de que Sigmund Freud leu muita literatura, pois seus textos científicos têm uma dose de imaginação que causaria inveja em vários escritores. Já abandonei alguns textos pelo caminho, pois senti que não me dava o mínimo tesão escrevê-los. Mas já terminei vários textos sem estar sentindo o menor tesão, apenas para provar para mim mesmo que eu podia escrevê-los. Quanto maior o desafio, maior o prazer posterior de tê-lo vencido. Mesmo que o durante tenha sido doloroso. Adoro dicionários, mas eles não criam um bom escritor. São um auxiliar, pois o que faz um bom escritor é ele ser um bom leitor. E bons leitores têm um vocabulário amplo, que faz o pensamento tornar-se flexível e criativo. Essa é minha tese: quanto maior o vocabulário, maior o pensamento de quem o possui. Mas, registro uma ressalva, que o grande vocabulário seja adquirido com obras cujo pensamento seja grande também. Uma coisa deve acompanhar a outra. Para escritores ensaísticos, como os do Digestivo, eu indico um texto pouco discutido, mas exemplar. Chama-se "O ensaio como forma", de T. W. Adorno. Depois de ler este texto, duvido que amarras pragmáticas possam encarcerar qualquer imaginação. Ao contrário da maioria das pessoas, escrever pra mim é um prazer enorme. Não acho doloroso. Divirto-me muito construindo e destruindo proposições, tentando dar vida a elas, fazê-las causar emoção no leitor e em mim mesmo. E ver o texto pronto, como este aqui, me dá a sensação de que gozei gostoso. Aquilo que Roland Barthes chamava de o prazer da leitura eu chamo de o prazer da escrita. E se Barthes estava certo, nós escrevemos para ser amados. Portanto, sejamos ao menos finos, elegantes e perfumados nessa hora. Para ir além Sobre o ofício do escritor, Arthur Schopenhauer Sobre a leitura, Marcel Proust As palavras, Jean-Paul Sartre O prazer do texto, Roland Barthes "O ensaio como forma", em Notas de Literatura I, Theodor. W. Adorno. Jardel Dias Cavalcanti |
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