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Segunda-feira, 29/6/2009
O leitor que escreve
Ricardo de Mattos

"Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido."
(Jules Renard)

Escrevemos por trabalho, escrevemos para aprender, escrevemos por prazer. Em nosso meio, até não muito tempo, a quem manifestasse o gosto pela escrita era aconselhado trabalhar em cartório ou cursar a faculdade de Direito. Mentalidade provinciana, ocasionalmente acompanhada de boa disposição em ajudar e ainda vigente. A opção pelo jornalismo era distante, vagamente inacessível. Quem afirmasse querer ser escritor, além de não ser levado a sério, ouviria a pergunta automática: e vai viver do quê? Concluímos, sim, o curso jurídico, mas fugindo completamente deste enfoque. Não deixamos de percebê-lo à espreita, seja por falta de assunto, seja por falta de imaginação das pessoas. A escolha da profissão calhou bem com o gosto pessoal, mas hoje representa-lhe uma face. Longe vai a época em que o bacharel direcionava para o processo sua pretensão literária mal resolvida. Houve um grande pasmo no âmbito forense quando se constatou que uma reta representa o caminho mais curto entre dois pontos. Privilegia-se menos palavras, menos volteios, mais argumentos e mais fatos comprováveis. O bacharelismo estrebucha esperando quem lhe dê o tiro fatal. Buscamos o constante aperfeiçoamento da escrita técnica, mas ela, por si, ser-nos-ia insuficiente.

Seremos o que se pode dizer "um escritor"? Receamos uma roupa que nos fique grande demais e nos torne ridículos. Nossa sensibilidade poética é quase nula. Este ano lemos uma coletânea do sueco Karlfeldt após um jejum de vários lustros, e mesmo assim encantamo-nos mais com o que percebemos de filosófico. Participamos sem sucesso de dois concursos de contos. Não nos declaramos inaptos à ficção por causa disso, mas reconhecemos que o fôlego ainda é insuficiente. Há um volumezinho sendo burilado sem pretensão imediata. Amantes da Cultura, diante da necessidade social de classificação preferimos o título de "compartilhadores". Aplaudimos o Engenho e queremos de alguma forma trabalhar para divulgar o que encontramos de bom. Rasos num assunto e esforçados em outro, pode resultar disso que escrevamos para poucas pessoas, porém confiantes na transmissão a contento de nossa sinceridade. Enquanto escrevemos, preferimos mesmo imaginar um serão ao pé do lume, ouvindo música entre livros e cães.

Não exigimos condições especiais de temperatura e pressão para escrever. Os hábitos do homem respeitam-lhe à personalidade, não a uma encenação calculada. Maquiavel trocava de roupa para adentrar ao seu gabinete de estudos. Parece que nobres excêntricos da Europa setecentista preparavam-se a caráter para a "convivência com os antigos". Alberto Manguel e Kipling coincidem na mania de manter quinquilharias sobre a mesa de trabalho. Consultada a história da literatura, depara-se com bizarrices diversas no tocante a patuás, cenas e até estados de consciência. Para nós, são exterioridades, distrações sem força atrativa. Além disso, parece-nos um meio tão fácil de criar um personagem e mergulhar na ilusão... Tivemos, sim, um hábito vinculado à escrita, mas abandonamo-lo. Fossem palpáveis estas colunas, muitas tresandariam a tabaco. Si hoje pedimos algo, é um pouco de tranquilidade, visto ser impraticável o silêncio. A música é sempre presente e variada, no geral ornando com o estado de espírito. Não a ouvimos como condição para escrever.

Neste exato instante, encontramo-nos numa sala de casa. Extraídas as amígdalas (com "g" pois nascemos antes do Acordo Ortográfico), ficaremos de molho conforme a recuperação. Preferimos o escritório profissional, onde esparramamos o material necessário. A coluna sobre o livro de Nicholas Saunders levou-nos à consulta de alguns mapas a fim de que nos situássemos melhor em relação aos continentes estudados. Viva a National Geographic! Lá podíamos deixar a bagunça intata o tempo necessário, sabendo que a faxineira não mexeria e nem a labradora Carmela cismaria de examinar de perto o que encontrasse de novidade. Clientes podem ser atendidos em sala separada e o que de urgente surja é cuidado sem misturar. A despeito, temos papel e lápis ou caneta em lugares estratégicos. Nunca sabemos quando elaboraremos um raciocínio pertinente, ou quando ouviremos expressões ou palavras curiosas.

As manhãs têm uma tranquilidade ainda pouco explorada. Referimo-nos ao período entre cinco e meia e sete horas, quando a vida está quieta e planejamos serenamente o dia enquanto esperamos ferver a água do café. Podemos recolher o jornal e lê-lo com calma durante o desjejum. Só não agredimos a leveza do instante colocando a cachorrada na cozinha: "desça da pia"; "não mexe no lixo"; "não ronca pra ela"! De barriga reconfortada e informados sobre o principal, deitamo-nos um instante e averiguamos o saldo. O andamento de um caso se manifesta com maior encadeamento. A abordagem de um livro delineia-se mais claramente. Pegamos um bloco deixado à mão e anotamos tudo. Breve compulsão alcança-nos e queremos registrar o máximo, ao menos as palavras chaves. Poderíamos reservar as manhãs para toda e qualquer escrita. Além de ser raro amanhecer assim, as melhores providências laborais e rotineiras são tomadas cedo, o que garante o resto do dia para qualquer emergência. Logo chega o almoço, de forma que a tarde acaba destinada aos serviços internos. Em compensação, o começo da noite acalenta-nos a conclusão de qualquer trabalho.

Por compreendermos a intuição e a inspiração de forma contrária ao materialismo ― e consequente individualismo ― reinante, iniciamos a disciplina do espírito na intenção de atentar cada vez mais aos pensamentos que se nos apresentam como que repentinamente. Não somos médiuns, mas não podemos negar o que vivemos. É comum recebermos insigths no trânsito, no momento das refeições, ou em conversas desligadas do assunto do qual nos ocupávamos. "Ah, mas isso é o seu subconsciente que continua preso à questão". Correto. Consideremos também os relatos daqueles que, cansados de matutar, adormecem e acordam com resposta pronta, experiência que não nos é estranha. A explicação usual limita-se ao descanso dado ao cérebro. Exato, outra vez. Nada descartamos daquilo que a Ciência descobre acerca de nossas funções e tudo acompanhamos interessados. Nem afirmamos a vivência do "Sobrenatural". Posicionamo-nos, sim, a respeito da face da Natureza cujo estudo é rejeitado por ceticismo, preconceito e confusão com esoterismos. Aprendemos a perceber que não estamos solitários em nossas divagações, sejam elas quais forem. Por conseguinte, adotamos o uso da primeira pessoa do plural visando expressar reconhecimento e agradecimento ao apoio generosamente concedido.

Seja qual for o tipo de escrita a que alguém se dedique, sempre será válida a opinião de Samuel Johnson, ainda que não isoladamente. Para o grande estudioso, "a maior parte do tempo de um escritor é passada na leitura, para depois escrever; uma pessoa revira metade de uma biblioteca para fazer um só livro". De acordo. Um texto pode ter várias interpretações, um fato pode ser apreciado de diversas maneiras. O tempo passa, os partidos se aquietam e podemos estudar com calma si o que nos ocorre possui realmente alguma originalidade e fundamento. Queremos acrescentar que mesmos os livros podem atrapalhar, então é chegada a hora do indivíduo ir à padaria tomar seu café, conversar, escutar a conversa alheia, andar sem pressa cumprimentando alguém aqui e ali. Eis quando o mundo reclama atenção que não deve ser negada. O esforço do atleta para levantar peso e sustentá-lo no ar difere do esforço daquele que disciplina seu passo e sua respiração para uma caminhada rentável. Johnson ainda assegura ser lido sem prazer o que é escrito sem trabalho. O segredo, cremos, está no trabalho crível, mas que não transparece, conforme lição colhida outrora em alguma doutrina oriental. Com o tempo o leitor aprende a identificar o autor laborioso. Lembramos aqui de Duque de Caxias ― O Homem por trás do monumento, de Adriana Barreto de Souza, e de A raiz das coisas ― Rui Barbosa: O Brasil no mundo, de Carlos Henrique Cardim. Ambos maciços e documentados, porém fluentes. Quando possível, deve-se realizar pesquisa tão extensa quanto possível e nem sempre a Internet proporciona os melhores resultados seja pela inexatidão, seja pelas lacunas.

A administração do tempo é atitude grata pelas oportunidades que acaba gerando. Havendo controle, estuda-se melhor um ponto, relê-se algo para apreender melhor a página tratada superficialmente, não se exige demais do corpo e sobretudo evita-se a pressão. Não gostamos de trabalhar pressionados ― embora saibamos o que é isso ― e privilegiamos a pontualidade. Perfeição não há, claro, pois o sistema automático do Digestivo ameaça-nos com o exílio caso uma coluna não seja cadastrada até determinado dia.

Por fim, algo que nos tem chamado a atenção é a questão da responsabilidade do escritor, e pelo jeito nossos estudos e observações começarão a pender por este caminho. Não a responsabilidade legal, flutuante conforme a suscetibilidade ferida. Também não é a responsabilidade social, pois se aplaudimos quem defende com substância uma causa, aborrecemo-nos quando a defesa transforma-se em panfletismo. A resposta delineia-se na investigação da proposta, do que leva o indivíduo a escrever e publicar. Nossa proposta atual, porém não definitiva, foi indicada no segundo parágrafo da presente coluna: compartilhar o que encontramos de bom. Foi-nos facultado o meio ― este site ― e o material ― os livros ― o que nos faz crer que nos desincumbimos a contento. Por que escrever ou por que um texto veio à luz é pergunta que precisamos aprender a fazer, pois farejamos um retorno surpreendente.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 29/6/2009

 

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