|
Sexta-feira, 24/7/2009 Anonimato: da literatura à internet Marta Barcellos Nunca recebi cartas anônimas, nem no tempo das cartas. Lembro-me no máximo de um poema sem assinatura, deixado em cima de minha carteira escolar, e também dos bilhetinhos do "correio elegante" em festas juninas distantes. Nem sei se contam, porque os remetentes não eram tão desconhecidos assim. Carta anônima de verdade, daquelas de estremecer relações e mudar o rumo das histórias, só existia na ficção. Revelava adultérios em dramas épicos ou pedia resgates, com letras recortadas de revistas, em romances policiais. O anonimato muitas vezes era mantido até a última linha ― do conto, não apenas da carta. Em "A cartomante", de Machado de Assis, o autor dos bilhetes ameaçadores recebidos pelo personagem Camilo, amante da esposa de seu melhor amigo, permanece incógnito para sempre. Fica a cargo do leitor imaginar quem estaria por trás de um ritual tão arriscado, que deixava um rastro de escolhas e pistas: papel, pena, letra e selo, quando não um portador. O anonimato prevalecia, em parte, porque a vítima estava impedida de investigar ― como Camilo, também era culpada. Mas tudo isso, como sabemos, era no tempo das cartas. Hoje, nos correspondemos por e-mails e redes sociais. E o anonimato... bem, o anonimato está por toda parte. Em algumas dessas redes, como em comunidades do Orkut, são quase regra. Descobrir a identidade por trás de um perfil fake, ilustrado por foto copiada da internet, é para iniciados. Nos comentários, a opção "anônimo" é oferecida sem pudores em blogs e comunidades virtuais. Não raro somos aconselhados por especialistas em segurança: não seja você, tenha um e-mail falso para eventualidades, como cadastros que podem gerar spams. Tento me acostumar, juro, mas confesso que acho tudo muito estranho. Na literatura, o anonimato tinha lá o seu glamour, talvez pelas dificuldades que a estratégia impunha. Nos tempos modernos, as facilidades tecnológicas deram um ar moleque para os bilhetes anônimos, como se escrever fosse tão banal quanto um trote telefônico. Por sinal, não sei que fim levaram os trotes, se foram abandonados por causa dos identificadores de chamada (bina) ou se a garotada achou diversão melhor nos computadores. Nestes, dá para pregar peças o dia inteiro, sem pagar pelas ligações ― basta que o papai banque a banda larga, crente que está ajudando no dever de casa. Como já passei meus trotes na infância, não vou dar lição de moral. Recordo-me do coração batendo acelerado, enquanto o mais corajoso do grupo punha-se a girar aleatoriamente o disco do telefone com o dedo. "Alô, é do açougue?", perguntava o líder. Note que havia açougues naquela época. Os outros em volta grudavam o ouvido no fone, tentando captar toda a emoção da traquinagem. Mesmo com o anonimato garantido, havia o sentimento de transgressão, e também um tiquinho de culpa, típica de quem já está aprendendo o que é certo e errado. Penso que hoje, se eu atendesse um trote ingênuo desses, daria uma boa gargalhada. Melhor que telemarketing ou presidiário forjando sequestro. Se você não conhece o final do trote do açougue, não sou eu quem vai contar. Provavelmente acharia tolo, porque afinal somos adultos agora. Ou pelo menos deveríamos ser. Quando vejo a disseminação de perfis fake, xingamentos anônimos e outras práticas que se disseminaram no ambiente adulto da internet, tenho minhas dúvidas. Sou a única sem paciência? O que leva alguém a escrever secretamente um texto e divulgá-lo como se fosse de Luis Fernando Verissimo? Imagino esta pessoa divertindo-se com o trote e vibrando ao pensar nos trouxas a repassar a corrente, exatamente como exultávamos diante da imagem do vizinho bufando depois de bater o telefone. No entanto, devemos considerar um detalhe: a idade dos anônimos de hoje. Minha intuição é que já passaram dos 10 anos há muito tempo. Diante da zombaria pseudoinfantil, flagro-me ranzinza, sem tolerância para as piadas que se repetem. Dou um sorriso amarelo para a fotomontagem que finge ser uma imagem espetacular, deleto a campanha viral travestida de utilidade pública, descarto comentários com indícios de provocação. Tanto conhecimento (e diversão real) disponível na rede, e preciso perder tempo tentando identificar os chatos anônimos, infiltrados na festa. Isso sem falar que alguns deles, se lhes for dada a chance de interatividade, podem transformar-se em agressivos trolls, segundo fui alertada. Quando dei por mim, já tinha adotado a regra: na dúvida, bloqueie, delete, ignore. E não se aborreça. Desligue o computador e vá ver gente de carne e osso nas ruas; quem sabe assistir a um filme ou ler um livro, daqueles com as palpitantes cartas anônimas de antigamente. Veja o caso do Twitter. Estava pensando seriamente em experimentar, quando presenciei alguns de seus entusiastas, com mais traquejo em redes sociais do que eu, festejar precipitadamente a adesão de personalidades à ferramenta. Teoricamente, seriam políticos e artistas importantes, se rendendo ao futuro. Em seguida, vinha a constatação: não eram os próprios. Eram pessoas que escreviam como se fossem eles. Suspirei. Pensei: ai, que cansaço, só de imaginar em ter de separar o joio do trigo para poder usufruir da nova rede social que se tornará velha daqui a pouco. Quem sabe, no próximo Twitter, já estarei mais acostumada com os chatos anônimos da internet. Aí prometo que entro. Com meu nome e sobrenome. Nota do Editor Marta Barcellos mantém o blog Espuminha de leite. Marta Barcellos |
|
|