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Sexta-feira, 7/8/2009
Considerações sobre Michael Jackson
Julio Daio Borges

* Eu lembro bastante da época do Thriller (1982). Penso que foi o mais perto que a minha geração chegou de vivenciar a beatlemania. Ainda que a morte do próprio Michael Jackson, e seus desdobramentos, tenha(m) dado um gostinho do que foi a "jacksonmania", a geração internet talvez não conheça nenhum fenômeno parecido. Na minha cabeça ― depois de ver E.T. e de haver visitado a Disney World e o EPCOT Center ―, o Michael Jackson fazia parte daquele imaginário que misturava a fantasia dos desenhos animados com o futurismo dos jogos eletrônicos. Michael Jackson não era somente música, era uma manifestação cultural que se impregnava no nosso dia a dia. Era um irmão mais velho, imaginário, com superpoderes, que levava toda a magia dos seus passos, e dos seus videoclipes, para a vida real ― porque, nesse momento, ele era o rei da música, ou da indústria, era idolatrado e rico como um faraó do antigo Egito.

* Então quando o Michael Jackson, dos anos 2000, morreu, eu me lembrei desse tempo da minha infância. E como o Michael Jackson dos anos 80, trabalhado pela computação gráfica, era uma obra de arte em si, ele não poderia ter morrido. Não fazia sentido. Seria como matar Mickey Mouse, Carmen Miranda, Carlitos... Michael Jackson foi um momento da cultura popular e é difícil apagá-lo em qualquer um que tenha vivido. Para mim, na fase em que mais me impressionou, Michael Jackson representava a contemporaneidade, a tecnologia e a arte de se produzir um artista, industrialmente, catapultando-o ao infinito. É um feito global, independente de se gostar dele ou não. Uma analogia exagerada seria pegar um artista de rua e replicá-lo em lares do mundo todo, de modo que sua presença se fizesse sentir, sua arte pudesse ser admirada, gerando dividendos e marcas na cultura. Antes da internet, é um feito incrível.

* Acho que foi no ano passado que assisti aos vídeos do Thriller, numa edição comemorativa dos 25 anos. A música não me dizia mais nada, depois de tanto tempo ouvindo outras coisas. E a estética me pareceu exagerada, típica dos anos 80, que trouxe o figurino das boates dos anos 70 para o dia a dia das pessoas... E Michael Jackson combinava perfeitamente com tudo aquilo ― com os efeitos especiais podia estender a infância, posando de figura assexuada e, ao mesmo tempo, investindo na própria androginia; congelando sua idade naqueles 25 anos, comprando "juventude eterna" através de sucessivas cirurgias; deslumbrando-se com o império que discograficamente construíra, e com o mundo que, momentaneamente, jazia a seus pés... E o que poderia fazer depois daquilo? Poderia morrer no auge, como alguns até conseguiram. Ou poderia encarar a decadência, porque o planeta inteiro já estava tomado e não havia mais para onde ir...

* O Bad (1987) eu até ouvi, na época, mas é como se não "colasse" mais. Cada disco de Michael Jackson, a partir daí, foi uma tentativa de repetir, claro, o sucesso estrondoso de Thriller. Aquela mistura de arte com indústria, que havia sido historicamente bem sucedida, desandou para o lado da indústria, que desejava novos recordes, e a arte ficou prejudicada, e, consequentemente, o artista. Dangerous (1991) eu só ouvi indiretamente por causa dos meus irmãos. Vendo os clipes dessa fase, e das que a sucederam, parece tudo uma grande montagem, hoje envelhecida, onde Michael Jackson só funcionava como um chamariz, para vender composições diluídas, shows em que ele mesmo se repetia, trazendo sobrevida à indústria que ajudara a consolidar, e que igualmente o produzira.

* Dias depois de sua morte, me ocorreu, como a outros comentaristas, que Michael Jackson foi a ascensão e a queda da própria indústria do disco... Que as gravadoras vêm definhando por causa da pirataria, do download e do compartilhamento de arquivos, todo mundo já sabia, mas, com o encerramento da carreira de Michael Jackson, parece que ficou mais claro, como numa fotografia mais nítida, porque subitamente revelamos o negativo (aliás, outra indústria que definha...). Traçar planos de dominar o mundo, a cada novo lançamento, deve ter se tornado mais e mais estressante, mais e mais frustrante, mais e mais impossível. Porque nem os "super efeitos especiais", nem a divindade do faraó, nem os passinhos de alienígena funcionavam mais sozinhos, sem uma megaestrutura como a que existia ― e que a internet pôs abaixo, fortalecendo a comunicação de "muitos para muitos", no lugar da antiga de "alguns para muitos" (televisão, rádio, cinema, jornais, revistas etc.).

* O que me traz a outro ponto, que me ocorreu enquanto rascunhava este texto. Lembrei também do Outliers, de Malcolm Gladwell. Michael Jackson é, certamente, um "fora de série" (ou um "ponto fora da curva"), um gênio (como repetiram tantas vezes), mas mesmo ele, multitalentoso, não teria sido possível fora do lugar e da época em que viveu. Para simplificar, basta construir um raciocínio hipotético de ele haver nascido na África, por exemplo... Para complicar, ele mesmo admitiu que "aprendeu a disciplina" através do pai (o mesmo que abusava da força quando ele não correspondia). Entendo a comoção geral e, como disse, todas as marcas deixadas na cultura popular, mas ele não era esse semideus que quiseram pintar ultimamente ― temos de dar crédito à indústria, com todos seus defeitos, à sua família, com todos os traumas, fora compositores, produtores, empresários, sem contar uma infinidade de artistas que o precederam...



* Muita gente queria que o mundo tivesse começado (e até acabado) com Michael Jackson, mas ele é resultado de um processo, não surge do nada, nem suas influências se apagam no limbo. Eu passei esse tempo, depois da morte dele, tentando fazer uma genealogia ― e sempre descubro, com interesse, uma admiração pouco divulgada, uma menção quase escondida, porque, em termos industriais, é mais fácil vender o "novo" ― criando uma moda, um frisson ―, que, para estabelecer novos recordes, tem de, estrategicamente, romper com o "velho"... Me ocorreu, por exemplo, James Brown, ouvindo rádio, outro dia. E, através da Wikipedia, acabei descobrindo que os Jackson 5 venceram seu primeiro concurso de calouros, em 1966, cantando, justamente, "I Feel Good". Também descobri que Michael Jackson quis homenageá-lo, por ocasião de sua morte, em 2006...



* E é inevitável pensar na cultura negra, na cultura que o negro trouxe para a América. (Do Norte, do Sul e Central.) É notável que Michael Jackson tenha se tornado o astro que se tornou, o "maior entertainer do mundo" ― e ninguém tenha querido matá-lo, como mataram Martin Luther King; ou, simplesmente, destruí-lo, como fizeram (não vou entrar aqui no mérito) com Wilson Simonal. E não é à toa que anunciavam tanto o perigo da morte de Barack Obama, se ele fosse eleito... Aliás, não canso de repetir que Obama teria sido impossível sem Jackson. (Claro que alguém ainda vai descobrir uma conspiração para desmoralizar Michael Jackson a partir de Thriller, porque seu sucesso incomodava muita gente etc.) E o Rei do Pop não é tributário, apenas, do soul da Motown, nem do funk de Brown, mas do rock de gente como Little Richard e Chuck Berry, e obviamente do jazz de gente como Louis Armstrong e Miles Davis.

* Quanto às inevitáveis acusações de pedofilia e abuso de crianças, é delicado afirmar qualquer coisa em definitivo. Eu nunca quis vasculhar esse assunto e não me imagino fazendo isso agora, depois de Michael Jackson morto. Tirando a hipótese (que eu sugeri antes) de um complô internacional para desmoralizá-lo, acho estranho que essas acusações tenham sido "plantadas" na sua biografia. Onde há fumaça, geralmente há fogo ― e, em termos de escândalos sexuais, poderíamos até afirmar que não há fogo: há incêndio. Ainda na pesquisa para este texto, me espantou a declaração de La Toya, acusando o próprio irmão de pedofilia (mesmo que ela a tenha retirado posteriormente). Concordo que a família Jackson não lá é muito unida, nem muito equilibrada, embora seja bem sucedida ― mas não é uma acusação de um menino, ou de um pai de um menino, é a opinião de alguém da família...

* Para terminar, a recente mitologia: "Michael Jackson não morreu"... Confesso que tanto quanto me espantei, com sua morte súbita, a hipótese, do sumiço, de repente me pareceu crível. E faz sentido: tudo o que Michael Jackson construiu, há mais de 25 anos, vinha sendo destruído ― por ele próprio. Para não prejudicar seu legado, e seu patrimônio, o mais indicado era morrer no auge (como eu disse), mas, não sendo mais possível, que tal "morrer" numa idade redonda (que tal 50 anos?), enquanto boa parte da população mundial ainda se lembra, ainda pode chorar e comprar os produtos de sua grife, perpetuando... o mito? Se o gênio de Thriller, por um instante, retornasse, acredito que faria isso... Mas, se ele não morreu, por outro lado, não acho que deva voltar. Pra quê? Para estragar a festa? A melhor coisa, para eternizar Michael Jackson agora, é preservá-lo morto e enterrado. Ou eternamente sumido. Seu último escândalo. Sua última obra-prima...

Julio Daio Borges
São Paulo, 7/8/2009

 

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