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Quinta-feira, 13/8/2009
A verdade entre o professor e o rascunho
Vicente Escudero


Sansão, discípulo aplicado, aguardando instruções

Cursos de criação literária são pequenos grupos de leitores que se unem para recriar um ambiente de discussão, em que os alunos tentam se equiparar ao professores já publicados, ou servem de instrumento de desenvolvimento da escrita, das técnicas de criação ficcional?

Possível redigir uma resposta convincente? A febre da criação dos cursos surgiu a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, e espalhou-se pelo mundo afora, até mesmo em países com pouca tradição literária como as Filipinas e a Coréia do Sul. Baseados em currículos que buscam atrair os aspirantes a escritores pela criatividade, seja através de workshops ou cursos regulares com bacharelado, garantidores de que o aprimoramento técnico não significará a homogeneização da escrita, prometem formar escritores prontos para o beligerante mercado editorial. Na busca pelo aluno, os cursos incorporam os valores contrários ao academicismo da cadeira dura da faculdade e das pequenas jornadas pelo quadro negro: em vez de a arte ser desenvolvida do lado de fora dos portões das universidades, jovens escritores são chamados para agregar seus valores à técnica, numa conjunção entre o abstrato e o concreto, com a intervenção do professor, verdadeiro mediador e pastor dessa espécie desgarrada conhecida como autodidata. A fórmula é simples, complicado é garantir que a maçã cairá da árvore.

A exigência de padrões em nosso tempo de relações massificadas, contadas na casa dos seis dígitos, pode ter chegado ao ilimitado universo literário. Diante de modelos e ideias pré-concebidas, a sensível interpretação dos fatos cotidianos, aliada à literatura volumosa sobre as técnicas da escrita ficcional parece não atrair o escritor preguiçoso, disposto a gastar (e muito) com aulas que valeriam algumas compras num sebo, além de lápis, borracha e papel. E a leitura constante dos clássicos, principalmente dos escritores que se transformaram em modelos de criação, como Henry James e Dostoiévski. Não é óbvio?

E o sebo não precisa ser em outro país. Descrever aquilo que é ordinário, os acontecimentos do cotidiano, transformar a realidade em ficção deveria ser o primeiro exercício do aspirante a escritor; o segundo, reescrever a história, sem mudar a verdade, de todas as formas diferentes que conseguir. Se o mundo exterior não é interessante e as diferentes personalidades não forem captadas, desnecessária a técnica. A literatura está mais presente na praça, onde Tolstói escrevia enquanto observava os rostos das pessoas, do que na discussão sobre a autenticidade e confiabilidade do narrador em Memórias póstumas de Brás Cubas. John Gardner, autor de A arte da ficção, tem um entendimento interessante do que seria um curso de criação literária adequado. No prefácio do livro, em determinado momento, ele traça a diferença fundamental entre o escritor e o professor, uma verdadeira barreira que jamais deve ser cruzada para garantir a qualidade do curso:

"Os verdadeiros artistas, por mais que nos mostrem uma expressão sorridente, são pessoas obsessivas, acossadas ― se por algum tipo de mania ou alguma visão nobre e elevada, não é coisa que nos diga respeito no momento. Qualquer pessoa que tenha trabalhado como artista e como professor poderá dizer, penso eu, que age de maneira muito diversa nesses dois campos. Ninguém é mais cuidadoso, mais escrupulosamente honesto, mais devotado à sua visão pessoal do ideal do que um bom professor tentando escrever um livro sobre Gilgamesh. Redigirá até altas horas da noite, deixará de ir a festas, sentirá pontadas de culpa por passar tão pouco tempo com a família. Não obstante, seu trabalho não se compara ao de um artista, assim como o trabalho de um perito-contador de primeira linha não se compara com o de um atleta disputando um campeonato. O professor utiliza aquelas faculdades da mente mais acessíveis a todo mundo. Tem, por todos os lados, apoios, controles, dispositivos de segurança, regras de procedimento que o guiam e garantem. É um homem seguro de onde pisa e do lugar que ocupa no mundo. Ele condiz com caminhos ensolarados, pavilhões de prestigiosas universidades, dessas que têm as fachadas cobertas de hera. Com o artista não é assim. Nenhum estudo crítico, por brilhante que seja, tem a vitalidade de batalha psicológica que faz parte do clima de um romance. As qualidades que distinguem um verdadeiro artista ― quase as mesmas que fazem um verdadeiro atleta ― tornam imperativo que o aprendiz de escritor jamais seja impedido de trabalhar tão a sério quanto deseja. Nos cursos universitários, fazemos exercícios, teses, questionários, exames finais, que não se destinam a publicação. Podemos seguir um curso sobre Dostoiévski ou Poe da mesma forma como comparecemos a um coquetel relativamente animado, beliscando salgadinhos e fragmentos de conversação ― quando bons ― suportando o que é tedioso, e indo embora para casa quando for chegada a hora. A Arte, naqueles momentos em que ela se parece mais com Arte ― quando nos sentimos mais vivos, mais ativos, mais triunfantes ― assemelha-se menos a um coquetel do que a um tanque cheio de tubarões. Tudo é definitivo, e não apenas um exercício. (Robert Frost disse: 'Eu nunca escrevo exercícios, mas às vezes faço poemas malogrados e a esses então chamo de exercícios.') Um curso de criação literária deve ser como escrever de verdade. Tudo que se faz tem de ser, pelo menos, potencialmente, utilizável, publicável, definitivo. 'Uma vontade poderosa' ― disse Henry James ―, 'só isso se exige!'. Não se deve desencorajar ou minar essa vontade.

A autenticidade da literatura depende dos limites impostos pelo seu próprio autor, e a utilização de fórmulas prontas, dentro de um ambiente em que se reproduz apenas a técnica, sem contato com a realidade, pode levar a criação a se transformar numa réplica, e o autor numa espécie de máquina criadora de rascunhos mal-acabados, que são rasgados por uma máquina mais poderosa, o professor, detentora dos códigos secretos para classificação e determinação do papel de maior valor. O pagamento pela mordida na mão do provedor parece ser o maior prazer proporcionado por essa "máquina de fast-food", comparação feita pelo crítico e romancista inglês Malcolm Bradbury: "Como o hambúrguer ― um híbrido vulgar que, conhecida a sua origem, ninguém jamais o comeria".

Contudo, Bradbury, professor de Ian McEwan, criou o primeiro mestrado de escrita criativa na Inglaterra, em 1970, talvez pela convicção de que a escrita possa ser aprimorada depois do talento do escritor ter sido descoberto e colocado à prova. Num primeiro momento, a criação literária é incumbência exclusiva do escritor. Depois de testado e aprovado pela crítica, leitores ou pela teimosa perseverança de assistir ao lixo se encher de papéis, o escritor pode tentar aprender algo diferente desenvolvendo uma tese que será usada, provavelmente, para criação de outra tese e de outros professores de criação literária. O aluno na conclusão do mestrado pode desenvolver um método, analisar um romance, mas o resultado não será nada parecido com o de George Orwell quando escreveu Lutando na Espanha, enquanto tratava de assegurar a veracidade do título.

Só que a experiência solitária não produz nada literário; apenas, na melhor hipótese, jornalístico ou panfletário. O método de criação, mapa mais íntimo jamais descoberto de qualquer escritor, é um labirinto repleto de caminhos alternativos que só podem ser percorridos com os instrumentos de pesquisa corretos, com a bússola regulada, sempre apontando para o norte. A leitura constante dos clássicos e o exercício contínuo da escrita são terrenos a serem percorridos pela alma do escritor, ser abstrato que habita só os crédulos e dá movimento ao que é vivo. Se Cícero disse que um aposento sem livros é um corpo sem alma, o escritor com uma grande biblioteca em busca de uma fórmula talvez seja o aluno do curso de criação literária: ainda que tudo esteja pronto para ser descoberto, ele prefere preencher seu vazio com as palavras dos outros.

Vicente Escudero
São Paulo, 13/8/2009

 

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