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Segunda-feira, 10/8/2009
Nos penhascos de mármore, de Ernst Jünger
Ricardo de Mattos

"Todos conheceis a profunda melancolia que nos cerca, ao recordarmos tempos felizes." (Ernst Jünger)

O escritor alemão Ernst Jünger viveu 102 anos: de 1895 a 1998. Assistiu a tudo no curto século de Hobsbawm: duas guerras mundiais, a Guerra Fria, os conflitos menores, a sucessão dos papas, movimentos libertários e artísticos, ascensão e queda do comunismo, construção e demolição do muro de Berlin, a chegada do homem à Lua, a evolução do telégrafo à internet. O Prêmio Nobel começou a ser entregue seis anos após seu nascimento. Fugiu de casa aos dezoito anos para integrar a Legião Estrangeira, no norte da África. Lutou na Primeira Guerra Mundial, onde foi ferido diversas vezes. Após frequentar as universidades de Leipzig e de Nápoles, gradua-se biólogo especializado em entomologia, isto é, estudioso dos insetos. Sua formação acadêmica inclui-o no seleto grupo de escritores entomólogos: Goethe, Maeterlinck e Nabokov. Escreveu obra numerosa abrangendo romances, política, biologia, cartas e diários. Destacam-se os romances Tempestade de Aço, de 1920, e Nos penhascos de mármore (CosacNaify, 2008, 200 págs.), de 1940, ora reeditada no Brasil.

Retornando da Guerra de 1914-1918, Jünger indignou-se com a submissão da Alemanha imposta pelo Tratado de Versalhes. Engaja-se em defesa do nacionalismo defendendo, em síntese, a guerra como único "impulso de transformação histórica"; a queda da democracia; e estabelecimento de uma ditadura liderada por um führer. Entretanto, quando o Partido Nacional-Socialista chegou ao poder pela urna, revoltou-se. Pelo que se entende, defendia uma ditadura esclarecida, que honrasse o nível cultural então alcançado, o que não foi bem o caso de Adolf Hitler. Com as devidas mudanças, pode ter sido o último platônico. Apesar dos contatos teóricos iniciais, nunca aderiu ao nazismo como seria de se esperar do seu ímpeto juvenil. Recusou qualquer vinculação ao regime, mesmo que oferecida de conjunto a um cargo financeiramente atraente. Muitos de seus posicionamentos foram alterados pelo contato com a realidade. Rascunhando textos de cunho antissemita, rejeitou-os ao apaixonar-se e casar-se com uma judia. Também não idealizou impunemente a guerra. Como cidadão alemão e ex-soldado, foi convocado a lutar pela Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Não deve ter sido o melhor momento de sua vida lutar a favor do que criticava.

Nos penhascos de mármore, escrito entre fevereiro e julho de 1939, e publicado no começo de 1940, costuma ser apresentado como roman à clef. Duas podem ser as acepções da expressão. A primeira refere-se à obra que, sozinha, permite entender a totalidade do trabalho de um escritor. Seria aquela que encerra suas principais indagações, seu posicionamento moral, literário, filosófico, político etc. A segunda é aplicável a obras que possibilitam o aguçamento da visão quando dirigida a um evento ou fase da História. Este é o sentido próprio ao romance ora comentado. Jünger apreendeu a essência dos fatos, filtrando e destilando tudo que testemunhou, tudo que vivenciou. Escreveu assim excelente narrativa. O resultado não é uma beberagem que queima a garganta, mas um licor que acalenta o espírito.

A trama desenrola-se em Marina Grande, país imaginário que resume toda a Europa. Seria o local onde cada povo do passado e do presente, bem como de cada um dos pontos cardeais, deu a sua contribuição para o aprimoramento cultural e civilizatório. No curso da história, descobre-se que não só o cenário, porém animais, plantas, personagens históricos e raças caninas são fictícios ou deslocados de seu habitat original em prol da ficção. Haveria numa aldeia o Eremitério, onde o narrador-personagem teria se retirado para dedicar-se a estudos botânicos em companhia de Irmão Otho. Apesar de claramente inspirado no seu irmão, no livro não é irmão de sangue, mas um antigo companheiro de batalha retirado à vida monástica. Difícil o texto consultado que não tenha feito a confusão. O que Jünger quer passar ao leitor é a ideia de região amena, onde a cultura adquire corpo e sofisticação, afastada do burburinho citadino, mas não tanto que coíba celebrações regulares. A paz seria tão grande a ponto de uma criança poder brincar tranquila entre cobras e lagartos. Daí o assombro com livre curso da barbárie num seio que deveria rejeitá-la de início. "O império deles não passa de uma grande terrina onde se vai cozendo a guerra", como teria observado Saint-Exupéry.

Segue-se a inversão paulatina deste estado contemplativo. A caterva vitoriosa em importante batalha anterior atua cada vez mais atrevidamente na vida social, política e institucional de Marina Grande. Forma partido encarregado de disseminar o horror e a destruição, encontrando aquela receptividade que causou estranheza ao narrador. Segundo ele, seriam pessoas que, incapazes de conceber ou de compreender o Belo, tomam por missão destruí-lo. "O mal prevalece porque os bons são tímidos". A Malícia nunca é brusca. Ela não rouba, apropria-se. Para isso, sua aproximação é cautelosa, cordial. Abraça para estudar punhalada futura. Quando não há mais o que disfarçar e a ruína consuma-se, Jünger cria uma batalha impressionante, na qual até os cães são envolvidos ativamente na fúria, remetendo-nos aos tempos romanos. Outra não é a origem dos mastins napolitanos.

Nos penhascos de mármore foi publicado com a Guerra de 1939-1945 já iniciada. Fatos e pessoas são reconhecíveis, mas parece não ter havido um embasamento exclusivo na construção de certos personagens. A exceção evidente é o monteiro-mor, líder do extermínio inspirado em Hitler. "Monteiro" era o empregado responsável pela supervisão de área florestal destinada à caça. Lembre-se do amante de Lady Chartelley. "Monteiro-mor" era o oficial de casa real, encarregado de organizar as caçadas da realeza. Além de menos óbvio que general, almirante ou brigadeiro, monteiro-mor é um título oficial, mas não militar, o que sabe a certa ironia. Zomba de quem se julga grande comandante e sequer pertence às forças armadas, ou pretende-se águia tendo envergadura de pardal. No sétimo capítulo, vemos um dos melhores esboços do führer verdadeiro: "Como nos velhos beberrões, seus olhos se inflamavam num traço de vermelhidão, mas, ao mesmo tempo, havia neles uma inabalável expressão de astúcia e de poder ― por vezes, de soberania".

Jünger queria uma sociedade dominante pela ciência, pela tecnologia e alta cultura, mesmo que imposta pela força bélica. Os acontecimentos decorrentes do privilégio do embrutecimento extinguiram-lhas melhores expectativas. Seu propagandismo nacionalista foi profundamente revisto e sua indignação transparece no romance. Não deve errôneo afirmar que o escritor contou com ele para negar ou esclarecer os escritos anteriores, para diferenciar entre o defendido em tese e o ocorrido de fato. "Naquela época, agradava-nos a sua proximidade ― vivíamos em estado de grande excitação e sentávamos à mesa dos poderosos do mundo (...) Tão logo percebemos essa falha, tratamos de repará-la".

Nota do Autor
O mesmo colunista teve publicado recentemente um texto na Revista da ABRAME ― Associação Brasileira de Magistrados Espíritas ―, também disponível on-line.

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 10/8/2009

 

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