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Terça-feira, 25/8/2009 Caindo de paraquedas na escrita Diogo Salles Outro dia, me sentei para escrever. Como nenhuma ideia parecia frutificar, fiquei pensando na própria escrita. Fiquei pensando no caminho que fiz para chegar até esta coluna. Imagino que a maioria dos colunistas e colaboradores do Digestivo (se não todos) cresceu entre livros, com o desejo de expiar ideias no papel, ops, no computador. Comigo era o contrário: aqueles calhamaços me faziam bocejar. Preferia os quadrinhos, já que a linguagem do desenho me falava em alto e bom som desde sempre. Desenhando desde criança, torrentes de ideias sempre pousaram no papel sem grande esforço. Era algo natural para mim. Mas escrever é outra história. E é uma coisa que nunca me imaginei fazendo. Tanto que só comecei a fazê-lo depois dos 30 anos. Ainda bem. Imaginem as barbaridades que eu teria escrito aos 20 anos? (Fico ruborizado só de pensar...). Escrever, para mim, não é só deixar as ideias fluírem ― como no desenho ―, é pensar, refletir, pesquisar, formular, lincar, editar... E ler. Ler muito. De certa forma, sinto-me um outsider aqui no Digestivo. Às vezes, penso que escrevo essas linhas por mera obra do acaso. Como sou um profissional da charge e da caricatura, tendo a escrever também de forma caricata. Se a metáfora é, por definição, uma figura de linguagem, para mim ela tem outro significado. É a chance de "caricaturar" o texto. Procuro metáforas divertidas, procuro "carregar" no humor (coincidência ou não, "carregar" é o verbo que dá origem às duas palavras: charge e caricatura). No fim, minha intenção é sempre trazer ao leitor um texto leve e bem-humorado. Nem sempre consigo. Às vezes, "carrego" demais no peso da mão e talvez seja por isso que o meu caminho para a escrita tenha sido tão pitoresco. Sempre fui aquilo que se convencionou chamar de "leitor médio". Até a adolescência, minhas leituras mais marcantes eram as colas que eu levava para as provas sobre os livros que me eram enfiados goela abaixo. Na época eu também lia, timidamente, os jornais. Primeiro era só o caderno de esportes (o futebol ainda era uma grande paixão minha), depois os cadernos de cultura... Ah, tá bom, vai... tentei bancar o intelequitual, mas não colou. Confesso: era só pra ver a programação da TV e ocasionalmente a resenha de algum disco ou show de rock. Quanto aos livros, minhas primeiras leituras "espontâneas", se assim podemos definir, foram as biografias escritas pelo Ruy Castro (a do Garrincha foi a primeira) e os thrillers jurídicos do John Grisham. Quando resolvi que seria chargista, percebi que era necessário ler o jornal inteiro e ficar ligado aos fatos políticos através de portais e noticiários da TV. Mesmo eu tendo me tornado um leitor um pouco mais atento, isso não me levou a ler mais livros. Eu continuava um "leitor médio". Ou mediano... Provavelmente medíocre. Aí embarquei numa experiência que, talvez, fosse ambiciosa demais para mim àquela altura, mas que mudaria a minha vida para sempre: lançar um livro. De quadrinhos, claro. Tudo começou em meados de 2005, quando explodiu a crise política no país. Foi um ano difícil para mim. Era uma heresia para um chargista se afastar da charge num momento como aquele, mas eu estava brigado com a minha profissão e dei uma parada com tudo para me dedicar a projetos sociais. Mesmo assim, o tsunami de escândalos me fez imaginar charges interligadas, em forma de quadrinhos ― um roteiro imaginário que poderia dar em livro, se fosse levado a sério. A princípio, não acreditei muito na ideia e ela foi para a minha gaveta (também imaginária). Após meses de projetos fracassados e empregos que nunca vinham, chegou o fim do ano. Com perspectiva zero, as caricaturas ao vivo salvavam o orçamento e, no fim, o único "projeto" que restava era o tal livro "engavetado". Mas eu ainda duvidava dele. Todos os grandes chargistas lançam suas coletâneas de charges no fim dos mandatos, portanto a concorrência era forte. Eu tinha que oferecer uma abordagem diferente e, assim, pensei numa HQ do mensalão. Mas calculei que o livro deveria sair pelo menos 40 dias antes da eleição (que seria em outubro de 2006), já que o Brasil só se interessa e fala de política no período eleitoral. Resolvi tentar, achando que os desenhos sairiam naturalmente, como sempre, mas ali eu esbarrava no primeiro obstáculo. Uma história em quadrinhos pede um roteiro. E ele precisava ser escrito. Sem uma narrativa, o leitor se perderia. Eu nunca tinha "escrito" ideias antes para depois executá-las. Me acostumei a esboçá-las direto no papel, sem anotações. O único recurso que eu possuía era escrever as ideias isoladamente e depois juntá-las em forma de storyboard. E assim o fiz. Em dezembro de 2005, comecei os primeiros rascunhos, sem grandes ambições. Como eu não tinha uma agenda para 2006, passei o Natal e o ano novo trabalhando e levei o "projeto" adiante nos meses seguintes. Na pior das hipóteses, eu lançaria tudo no meu site. Por volta de abril, entre dezenas de rascunhos, eu tinha três capítulos prontos e uma capa provisória. Nessas horas, é muito fácil ir atrás de elogios (é só procurar a família e os amigos), mas fui atrás de críticas e opiniões de profissionais da área. Olhos externos poderiam arejar a minha cabeça. Meu padrinho nas artes, o Maia (Gepp e Maia), não se empolgou quando lhe mostrei os esboços. Eu não tinha um conceito, um enfoque central para o livro. Quer dizer, eu tinha, mas eu não sabia como transportá-lo para o papel de forma que a história fizesse sentido. O processo de escrever, criar e ilustrar ― tudo ao mesmo tempo ― gerou o caos. Com seu olhar crítico, Maia me ajudou a encontrar esse conceito, a espinha dorsal do livro, e ainda deu opiniões nas caricaturas, nas piadas e nas expressões dos personagens. Falou também para eu criar uma nova capa. "A capa é 50% do livro" disse ele. Outra pessoa que apareceu no processo foi a Kandy Saraiva, que se tornou a minha revisora e ainda me abriu os olhos para todas as idiossincrasias do perigoso mercado editorial. Fábio Moon e Gabriel Bá, profissionais renomados dos quadrinhos, opinaram na parte técnica do desenho, na diagramação, na disposição dos quadros e dos balões. Depois que as críticas pavimentaram o meu caminho, entrei em confinamento. Nada de bares, noitadas ou distrações. Foco total no livro. A despeito das opiniões alheias, o processo todo foi bastante solitário. Principalmente depois que as (poucas) editoras que se dispuseram a me receber, recusaram o projeto. Temendo represálias, editoras sempre evitam livros que criticam acidamente os governos, seus maiores clientes. Percebi que além de todos esses obstáculos, eu ainda teria que arcar com todos os custos do livro. Mas não ter uma editora, no fim, acabou sendo bom, pois minha intenção era demolir o establishment político, levando minha crítica para lugares onde outros chargistas tinham receio de ir. Eu não tinha a mínima ideia de onde aquilo ia dar. Segui em frente confiando apenas no meu instinto. Uns me criticaram pela acidez, outros me elogiaram pela coragem... e todos acharam que eu era louco. A verdade é que, naquele tempo, eu nem saberia fazer esse trabalho de outra forma. Eu não tinha absolutamente nada a perder e uma editora àquelas alturas poderia frear meu apetite pela destruição. Me sentia aprisionado, financeira e profissionalmente, mas, artisticamente, nunca tive tanta liberdade. Já era início de junho, e todo o conteúdo estava pronto, mas ainda em preto e branco. O primeiro conselho do Maia veio de cara: "Antes de colorir os desenhos, você precisa tirar uns 15 dias para rediagramar tudo, ousar mais". Tirei os 15 dias não só pra rediagramar, mas também para reescrever alguns balões e produzir todas as vinhetas que faltavam. Lembro bem que, no dia em que completei 30 anos (19/06/06), resolvi ignorar a data e finalmente comecei a colorir o livro. Era a reta final e estipulei pra mim mesmo o prazo de 20 dias para terminar tudo e encaminhar o resultado à gráfica. Além disso, eu tinha que correr atrás de toda a parte burocrática, conseguir o ISBN e a ficha catalográfica, procedimentos que eu desconhecia até então. Consegui cumprir o complicadíssimo cronograma para ter tudo pronto até agosto. O Maia, sempre econômico nos elogios, dessa vez se rendeu: "Eu, na sua idade, não teria tido o ímpeto e a garra que você teve para fazer tudo em tão pouco tempo". Hoje faz exatos três anos que corruPTos?... mas quem não é? chegou às livrarias. O livro vendeu mil exemplares em seis meses e concorreu ao prêmio HQ Mix na categoria "Publicação de Charges" daquele ano (quem levou o prêmio foi a Antologia do Pasquim ― não disse que a concorrência era forte?). Nada mal para um livro independente de um autor incipiente. Acontece que, dois dias antes do lançamento do livro, o Julio escreveu uma nota sobre ele aqui no site e, por e-mail, insistia para que eu montasse um blog para divulgá-lo. Mesmo desconfiando dele (e de mim mesmo), criei o blog e comecei postando sobre os processos que enfrentei ao fazer o livro, desde a criação, passando pela execução, até a divulgação. Depois disso, percebi que era uma boa hora para voltar às charges e resolvi transformá-las em posts, acompanhadas de textos curtos. Aos poucos, os textos ficavam mais longos e pretensiosos. As charges, que a princípio eram o "carro-chefe", se tornaram meras vinhetas. Vejo vários blogueiros por aí se lamuriando por terem 15 ou 20 leitores. Se eu tivesse meia dúzia já era muito. E o blog era muito ruim, resumindo num português bem claro. Tanto que, num dos poucos rompantes de sanidade que tive, "matei" o dito cujo. Mas algo em mim tinha mudado. Tinha me tornado um leitor voraz. Além da paixão pela música e pelo cinema, eu tinha agora uma nova obsessão: a leitura e os livros. Aprendi a cultuá-los. Percebi também que só escreve bem quem lê muito. Foi assim que mergulhei de cabeça na obra de Millôr Fernandes. Além disso, minha coleção de livros de humor, coletâneas de charges e caricaturas de grandes mestres, HQs, graphic novels aumenta a cada dia, disputando espaços com meus CDs e DVDs. O blog pode ter morrido, mas o que ficou dessa experiência sobreviveria para sempre. A escrita prosseguiu, nesse espaço que você lê agora. Foi aqui que tive toda a liberdade para contar histórias, canalizar inquietações e exorcizar demônios. Lembro bem do primeiro texto que enviei ao Julio. Este texto, que me tornou colaborador do site (e, mais tarde, colunista) é, até hoje, um dos meus favoritos. Engraçado pensar como uma coisa foi puxando a outra. Sem perceber, tracei todo o caminho para chegar até aqui, respondendo ao questionamento que fiz lá no início desse texto. Como chargista, foi só depois que entrei no Jornal da Tarde que pude evoluir meu trabalho. De dentro da redação, pude melhorar meu traço, ampliar meu repertório e amadurecer minha maneira de enxergar a política. Já como escrevinhador, sei que ainda tenho muitas linhas e parágrafos pela frente, mas não esquecerei de minhas raízes. E elas estão todas aqui, no Digestivo. Diogo Salles |
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