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Sexta-feira, 21/8/2009
Fui assaltado
Julio Daio Borges

* Foi numa terça-feira à noite. Saí do escritório antes das 20 horas e lembro de ter visto uns vídeos no YouTube. Coloquei, no carro, a mesma música cuja performance vira no escritório e segui, como fazia há quase três anos, pela avenida Giovanni Gronchi. Mais ou menos na altura da favela Paraisópolis, estava parado na pista da direita, perto da calçada, quando ouço alguém batendo freneticamente na janela do passageiro. Desliguei o som e abri o vidro ― porque, pelo barulho, imaginei que fosse alguém, realmente, precisando de ajuda. Não era; era um assaltante. Lembro que ele estava com um blusão vermelho, do tipo com gorro e bolsos na frente. Entendi tudo quando me apontou um revólver. Mesmo sem conseguir ver inteiro (estava escuro), tinha certeza de que era um cano preto, com um orifício na ponta, e que mirava na minha direção...

* Minha primeira reação foi a clássica "mãos ao alto". Minha primeira reação, portanto, foi imediatamente me render e sinalizar que não estava disposto a "reagir". Numa fração de segundo, lembrei de todos os filmes, e seriados, que havia assistido, onde um movimento brusco pode indicar ― no ponto de vista do agressor ― a tentativa de alcançar uma arma. O problema é que o assaltante tinha pressa e começou a gritar que eu deveria "passar tudo", "passar logo". Falou como se eu tivesse alguma "prática" em assaltos (como ele, provavelmente, tinha em assaltar). Pelas suas contas, estava "demorando demais"... Nessa hora, já havia outro assaltante, agora do meu lado, mas não tive tempo de olhar na sua cara, nem sequer de abrir o vidro ― estava absolutamente concentrado no revólver, que continuava apontado para mim, do lado do passageiro...

* Minha próxima reação foi perguntar o que eles queriam, mas o sujeito à minha direita estava tão sôfrego ― possivelmente sob o efeito de narcóticos ― que só conseguia berrar que, se eu não passasse logo, iria me dar "um tiro na cara". Eu só quis perguntar se eles queriam o meu carro, porque, se quisessem, eu sairia na hora e entregaria tudo ― a fim de que desaparecessem; e eu nunca mais tivesse de voltar lá... Permaneci calmo, no entanto, e entreguei o que estava mais à mão: minha carteira. "O que mais?", ainda tive tempo de perguntar. "O celular!", uivaram. Alcancei o aparelho e enfiei, igualmente, pela fresta do vidro da janela do passageiro. Nesse momento, possivelmente o farol da avenida abriu, os carros começaram a andar, e eles saíram correndo pela noite adentro.

* Tinha durado quanto? Um minuto? Eu tentei acelerar porque não queria que voltassem. Aí, sim, poderiam querer o carro ou, pior, poderiam querer me levar... Tive vontade de decolar num foguete, mas um Audi, à minha frente, atravancava o trânsito, enquanto outro carro, encostado ao lado, sinalizava para o motorista do Audi, que parecia momentaneamente incapacitado para guiar... Buzinei, como nunca buzino, e então liberaram a minha passagem. Era como se dissesse: "Vamos embora, porque esta avenida está cheia de assaltantes" ― "e eles podem querer nos pegar...!". Só depois me ocorreu que o motorista do Audi podia ter sido assaltado também, afinal estava na mesma pista que eu. O que explicaria, inclusive, o meu assalto, já que o meu carro é considerado low-profile (nunca passaria por "visado")... Uma tentativa de reconstituição: os assaltantes partiram em direção ao Audi, mas não devem ter se contentado, e continuaram assaltando, na sequência, até me encontrar...

* Eu nunca tinha sido assaltado antes. Eu era daqueles que se gabava por nunca ter sido assaltado em São Paulo. Como se fosse uma questão de escolha... Eu tinha uma relação de intimidade com a cidade e, olhando agora em retrospecto, percebo que me aventurei desde os primeiros shows, na adolescência, no extinto Projeto SP (Barra Funda), até os últimos concertos, no ano passado, na Sala São Paulo (Estação Júlio Prestes ― cujo estacionamento, por um desses contrastes do Brasil, desemboca na "cracolândia"). Fora isso, estudei na USP, morei perto do Jockey Club e trabalhei na avenida Paulista. Pego, às vezes, a marginal Pinheiros e pegava, sempre, a Giovanni Gronchi. Que eu tenha passado mais de 30 anos nesta cidade, sem ser assaltado, é que é o milagre...

* Não tive medo de morrer como não tenho medo de morrer agora. Tenho a sorte de fazer o que gosto e de poder me dedicar às pessoas que amo. Tenho, portanto, a consciência tranquila, no sentido de estar fazendo o que sempre almejei. Se a minha vida estiver ameaçada ― ou mesmo se passar por uma situação de risco, como essa do assalto ―, não sentirei o arrependimento de quem passou pela existência vivendo uma vida que não era a sua... Essa serenidade me ajudou na hora do assalto. Reagi calmamente, embora saiba que ― do mesmo jeito que não escolheram meu carro, mas me assaltaram ― eu poderia, sim, levar "um tiro na cara", se o assaltante não estivesse "num dia bom"... Ou seja, depois do assalto, não tive aquele surto filosófico de pensar sobre "a vida e a morte", o significado das coisas etc. ― mas me incomodou a aleatoriedade do fato, a fragilidade da situação e, a partir de agora, a insegurança da nossa sociedade...

* Eu era daqueles que considerava o debate sobre "violência" um exagero (típico da classe média). Uma discussão beirando a histeria, alimentada por capas sequenciais de Veja e manchetes sensacionalistas de jornais flertando com as classes C e D. Hoje, acho que a violência é, sim, uma questão relevante; não como a Veja acha, nem como os jornalecos de banca ― na realidade, como um princípio irredutível: desde as lutas de gladiadores romanos até os genocídios do último século, passando pelos tiroteios do velho oeste (talvez a "pulsão de morte" que queria Freud)... Não sou ingênuo a ponto de pensar que vamos parar de brigar pelo que acreditamos ― até porque a vida adulta é uma luta (como na frase de Disraeli). Agora: uma coisa é jogar o jogo (do capitalismo, digamos); outra, bem diferente, é retroceder a um estado de barbárie, ameaçando, pela violência, séculos de civilização. Os sujeitos que me assaltaram não eram de nenhuma raça específica ― não sou racista, nem preconceituoso ―, mas não consigo acreditar que eles concebam a vida humana como eu a concebo.

* Não sei qual é a solução; e esse é o grande dilema. No Morumbi ― tomo como exemplo o bairro onde, praticamente, trabalho e resido ―, estamos cercados de favelas. Obviamente não acho que todos os favelados são criminosos ― até porque convivo com alguns deles ―, mas o fato é que as grandes cidades brasileiras estão se convertendo em potenciais zonas de conflito. Comentei com a Carol, sem nenhum desdém (até com resignação): "Estamos no território deles". A avenida Giovanni Gronchi, aquela em que fui assaltado, divide geograficamente duas grandes favelas. O farol, onde fui abordado, é exatamente onde essa "divisão" fica mais patente. Conclusão: asfaltamos uma avenida, que, hoje, passa no meio do território deles... ― então por que nos surpreendemos se, de repente, eles decidem nos "pedagiar"?

* Eu deveria ter concluído que aquele cruzamento era perigoso. Quantas vezes não passei por ali, mesmo durante o dia, e avistei carros de polícia, estacionados de um dos dois lados da avenida? Quando fui assaltado, me lembro bem, não havia polícia. Os policiais, evidentemente, sabem que assaltos ocorrem naquela altura da Giovanni Gronchi. E, possivelmente, tentam estar presentes (vamos lhes dar um voto de confiança), para inibir a ação dos assaltantes. Mas o que podem meia dúzia de policiais, ainda que armados, contra um morro inteiro ― dois morros inteiros, um de cada lado ― se os bárbaros resolverem, um dia, partir para o confronto?

* Muita gente vai dizer que estou sendo injusto, e que afirmar tudo isso é um exagero de minha parte (ainda mais estando sob o efeito do trauma etc.). Mas vale dizer que não fui assaltado ontem, nem na semana passada, nem, muito menos, há duas semanas... Resolvi esperar; e escrevo, agora, com serenidade. Não estou conclamando ninguém a tomar nenhuma atitude específica (muito menos pegar em armas). Nem estou me candidatando a nenhum cargo público. (Apesar de me sentir tentado a sugerir mais controle de natalidade e de deixar claro que não acredito na eficácia da pena de morte ― como instrumento de dissuasão...) Enfim, já fico feliz se você pensar a respeito do assunto (assalto, violência, sociedade). Porque, se foi assaltado, vai entender perfeitamente o que estou falando; e, se não foi, espero que não tenha de passar pela mesma experiência para concordar... Tento, a todo custo, fugir dos clichês, mas um deles me parece inescapável: temos de encarar alguns problemas, sérios, que temos hoje; porque, se não nos ocuparmos em tentar resolvê-los, vamos arriscar, diariamente, tudo o que construímos, para morrer inutilmente...

Julio Daio Borges
São Paulo, 21/8/2009

 

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