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Segunda-feira, 5/10/2009
A dança das décadas
Pilar Fazito

Em mil-novecentos-e-refrigerante-com-rolha, a chegada aos trinta anos vinha com uma chacoalhada existencial, uma pausa para uma angustiada reflexão, já que a expectativa de vida não passava muito dos sessenta. Nesse tempo, os trinta marcavam um conjunto de metas que deveriam ter sido cumpridas até o dia do aniversário do sujeito: emprego sólido e bacana, marido ou mulher minimamente apresentáveis à sociedade, filhos pródigos, uma casa com uma cerca branca e um beagle correndo pelo jardim. Daí em diante, haveria mais trinta anos para ver os filhos crescerem e os netos nascerem. Já a aposentadoria era considerada a antessala da morte.

Hoje, a expectativa de vida beira os oitenta e quem chega aos trinta sente que mal saiu da adolescência. Ainda há uma pá de coisas a fazer e um monte de gente e lugar para conhecer antes de se dedicar à procriação e à perpetuação da espécie.

O fato é que a velhice é a última coisa que passa pela cabeça de um jovem de vinte anos e a penúltima que passa por quem está na casa dos trinta. Quando a gente começa a contabilizar o tempo das amizades em décadas, ou quando aquele primo que vimos nascer vem nos entregar o convite de formatura, parece que a nossa estrutura espaço-temporal sofre uma espécie de tilt. Mas a gente não dá muita bola para isso e continua a viver como se a imortalidade fizesse parte dos nossos super poderes.

Então, todo mundo começa a se casar e a gente começa a também contabilizar em décadas o tempo de exercício profissional e de fim de namoro. Na primavera, crianças nascem por todo lado, na proporção de um pimpolho para cada flor que brota na cidade; a gente se dá conta de que faz quase trinta anos que E.T. estreou no cinema e que, não, Belinas e Caravans não são mais carros seminovos.

Por mais que a gente tente ignorar que as moiras já fiaram mais de um terço do nosso novelo do tempo, estão todos lá: as moiras, as moscas e os relógios derretidos de Salvador Dalí; todo mundo celebrando a morte diária das nossas células.

Quem luta contra o tempo acaba caindo na patética resistência às mudanças. Não tem coisa mais fofa e engraçadinha do que um adolescente cabeludo, seja à moda riporonga, punk ou metaleira. Não tem coisa mais decadente do que manter esse "papel" depois dos trinta.

Mas a gente começa a sentir que o tempo está passando mesmo quando a força da gravidade faz sentir seus efeitos, jogando tudo no chão: cabelo, pele, músculos. Haja abdominal para manter tudo no lugar. Haja ginástica facial, Botox, colágeno... A preocupação com a celulite cede lugar às rugas, muitas delas causadas pelas juvenis preocupações com a celulite. Como se não bastassem as questões estéticas e fúteis, o corpo começa a dar sinais de disfunções estruturais: dá-lhe diabetes, hérnia de disco, hipertensão e toda a letra titânica do "Pulso ainda pulsa".

Há quatro anos carrego um disco lombar rompido, o qual carinhosamente chamo de Clotilde. Achei que essa hérnia merecia um nome, já que ela tem vontade própria. Ela não pode ser operada e, por isso, tivemos - ela e eu - que aprender a conviver de forma mais ou menos pacífica. Por duas vezes, entretanto, tivemos sérias desavenças e, em ambas, Clotilde ficou emburrada por um mês, negando-se a trabalhar, como sempre fez. Nesses casos, sou obrigada a ficar deitada no chão, rodeada de bolsas de água quente, travesseiros sob as pernas e à base de antiinflamatórios que irritam o estômago, fazem o cabelo cair, mas ao menos acalmam a raiva de Clotilde.

Na primeira vez em que isso me ocorreu, passou-me pela cabeça, por um certo momento, a estúpida ideia de que nunca mais andaria novamente. É que a gente só dá valor ao que tem depois que perde, mesmo que momentaneamente. E naquele instante foi duro perceber que eu não estava cuidando da minha coluna como deveria. Só depois de arrebentar meu disco lombar é que passei a dar mais valor à minha capacidade de locomoção e à liberdade de ir e vir. Para piorar, do chão eu observava meus sobrinhos entrarem correndo pela casa e me perguntava onde eu havia deixado a minha elasticidade infantil, as estrelas, cambalhotas e as bananeiras que eu plantava encostada na parede.

Não é só um corpo que cai. Não sei bem o que acontece entre os 27 e os 33, mais especificamente, mas parece que no meio desses números inteiros aí a gente se parte. Em dois pedaços ou mais.

Aos 27, a gente não titubeia em aceitar um programa tosco de viagem "zero-oitocentos" pro carnaval de Salvador, dividindo com vinte e cinco amigos uma quitinete e um único banheiro com chuveiro frio. Quando tem água.

Aos 33, a gente pensa no que tem para fazer no dia seguinte, antes de cogitar qualquer saída para uma "balada". Aliás, a cama e o lar, de repente, ganham contornos muito mais convidativos do que a ideia de sair de casa, aturar um monte de gente bêbada, chegar em casa cansado e ainda ter que pagar por tudo isso. Uma boa noite de sono e a certeza de não ter olheiras pela manhã passam a ter um valor bem maior.

Os gostos mudam, as preocupações mudam, as conversas, idem. O papo, agora, é filho, marido/mulher, uma promoção, a troca do carro, a compra de um apartamento, a poupança, o plano de saúde, o plano odontológico, a viagem de férias, o tratamento estético e, se sobrar dinheiro..., "será que esse negócio de previdência privada vale mesmo a pena?"

Mas os 30 ainda não são os 40. E os 40 não são os 50. E os 50, definitivamente, não são os 60. A geração de hoje que tem mais de 60 parece rejuvenescer a cada dia. Do mesmo modo que um portal para outra dimensão etária se abre entre os 27 e os 33, parece que depois dos 60 a classe média encontra o caminho de volta. A lógica é outra: finalmente, os filhos estão crescidos, a casa já tá paga, a aposentadoria saiu e o sujeito não tem mais a necessidade de "engolir sapos" ou de ouvir calado a disparates de quem quer que seja.

É bem verdade que os remédios e tratamentos são mais caros e a saúde já não permite fazer tantas estripulias - embora eu conheça e inveje uma senhora de 90 que até os 87 andava sozinha de jetski. Mas o fato é que os pós-sessentanos andam muito saidinhos e os programas da terceira idade de clubes, associações e instituições chegam a ser mais animados do que muita noitada teen.

Enfim, ainda não sei como são os 40, 50 e 60 em diante, mas já deu pra saber que o tempo passa para todos. E embora essa assertiva faça parte do senso comum e, portanto, não traz nada de novo para o desenvolvimento da humanidade, rende algumas crônicas, além de despertar reflexões periódicas sobre os nossos projetos de vida. Nessas ocasiões, a gente tem a oportunidade de reconhecer o valor das escolhas que fizemos. E depois que a melancolia do saudosismo passa, a gente acaba empolgando e perguntando "tem mais?"

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 5/10/2009

 

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