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Sexta-feira, 6/11/2009 Passar a limpo Ana Elisa Ribeiro Embora eu quisesse muito aprender a escrever, não foi por isso que minha letra se tornou bonita. Nunca foi, mas logo no início era algo entre o ilegível e a garatuja mal-assombrada. Durante alguns meses, professores e parentes sentiram a dificuldade dos paleógrafos, ao tentar revelar escritos enigmáticos e parecidos com eletroencefalogramas intraduzíveis. Depois de uns meses tentando me convencer de que era necessário que alguém interpretasse meus garranchos, a professora prescreveu: caderno de caligrafia. Ao que minha mãe respondeu de forma imediata, comprando uma brochura com umas pautas irregulares. Aquilo me lembrava partituras, onde também se escreve com altos e baixos, mas a ideia era "regularizar" minha letra, melhorar-lhe o desenho, a legibilidade, abrir o "olho", arredondá-la, até porque ter letra feia não pega bem para uma moça. É mole? Atirei-me a caligrafar. Diariamente, pegava meu caderninho e saía a copiar textos e nomes de pessoas naquelas pautas assimétricas. Redondo, pezinho, altura da letra, alcançava a linha mais alta, a barriga do g, a alça do o, o corte do t, as curvas do v. Dias e dias em cima daquelas pautas. Não se podia contar a ninguém. Era um caso entre nós, segredo entre moças. Será que homens fariam caligrafia? Depois de algum tempo, os resultados já eram óbvios. Minha letra-rabisco havia se convertido em uma letra redonda, robusta e segura. No fundo, eu não sabia o que aquilo queria dizer. A letra nos transforma? Em que medida a letra tem a ver com minha identidade? Lá estava eu exibindo minha rotunda caligrafia, armada e quase ornamental. A professora e a mãe estavam orgulhosas. Eu não ligava muito, embora soubesse que agora poderiam me ler. Fico pensando: por que eu fazia uma letra feia e riscada? O pai médico teria alguma influência nisso? A vontade edípica de escrever as receitas dele? Ou era mesmo um modo de manter meus escritos em relativo segredo, dando muito trabalho ao leitor que quisesse, de fato, deslindar meu esfíngico traço? Durante muitos anos, escrevi a mão. Até hoje tenho problemas com lápis. Adoro canetas, especialmente as azuis. O sonho de muitos anos foi obter a permissão dos professores para escrever a caneta, sobre pautas regulares, algo que só se fazia quase na quarta série. Nem mesmo as manchas da tinta nos dedos me incomodavam. A fluidez da esferográfica me animava muito mais do que o atrito do grafite na folha. Além disso, tenho mãos leves, que escrevem claro demais. Operar com essas tecnologias sobre papel poroso me dava um prazer indisfarçável. Gastava cadernos de trás para frente, anotando ideias rompantes, ensaios de poemas, uns poucos desenhos (essa modalidade nunca foi meu forte), recados para quem não deveria lê-los. Agendas me acompanham até hoje e sem elas fico sem chão. Precisam ser de papel, que não dão pau e ninguém quer furtá-las. Mantive diários até a adolescência e fiz brochuras e mais brochuras de poemas. Ao longo da produção de minhas monografias acadêmicas (bacharelado, mestrado e doutorado), mantive bloquinhos e cadernetas no criado-mudo, para quando me assaltavam aquelas ideias muito próximas da solução de meus problemas ou da resolução de meus questionamentos. Minhas hipóteses, minhas indicações de livros e autores, minhas citações preferidas ficaram todas ali. Um detetive com um lápis poderia recuperar meus trajetos intelectuais rabiscando os avessos de minhas páginas riscadas. A máquina de escrever foi um entreposto. Depois de costurar os textos com agulhas, era como dar-lhes acabamento mais simétrico e regular com tipos presos a hastes. Duas coisas me irritavam: a fita gasta (dando aspecto irregular à cor do texto, o que hoje acho um charme) e o momento em que as hastes se enganchavam, atrasando meu "passar a limpo". Há anos não faço isso: "passar a limpo", como se fora suja a escrita a mão. Calcular margens e separações silábicas era difícil na máquina. Se no manuscrito eu aprendera certa arquitetura das palavras na linha, sem precisar hifenizá-las com tanta frequência, essa conta me parecia mais complexa no papel branco sem pautas. Minha letra caligráfica era enorme, gastava folhas com pouco texto, meus colegas riam da minha facilidade em entregar calhamaços, já que cada pauta acomodava apenas quatro ou cinco palavras. A máquina me trouxe alguma concisão e o gosto de ver a página composta. A máquina era o acabamento. Anotado o texto e feito o recheio, era necessário ver o texto composto, margeado, emoldurado e sólido. Dava gosto. Ainda dá. Não é à-toa que escrever no computador tem um gosto que só quem gosta de publicação entende o que é. Dia desses conversava com uma escritora de verdade, dessas premiadas. Fazia um serviço para ela e, de repente, me deu vontade de saber: "como você escreve? Anota primeiro ou vai direto?". A curiosidade me veio porque a vi batucar um notebook importado, enquanto consultava uma agendinha surrada de papel. Que cena linda. O livro dela dependera de muita pesquisa histórica, então imaginei que deveria haver ali qualquer método de anotar. Que fosse o tradicional ou aquele sonhado por Vannevar Bush, em 1945, mas deveria existir algum. E ela exibiu as anotações a lápis dentro da agenda, enquanto me dizia que o computador era para uma fase mais final. No mesmo dia, observava uma professora de Biologia escrever umas coisas sobre um evento. Anotava critérios de classificação, nomes de alunos e categorias de prêmios, com uma belíssima e arredondada letra, coisa que minha mãe ou minha avó chamariam de "letra de professora" e que desconfiei ter sido cunhada no caderno de caligrafia. Não tive coragem de perguntar. Ao contrário do que pensam por aí, muitos professores de Biologia têm boa letra e sabem desenhar muito bem, assim como professores de Física ou de Geometria. É fascinante, pelo menos como arranjo estético. Engenheiros, por exemplo, o que são engenheiros? Solucionadores de problemas, em geral, sociais. Não são homens da racionalidade emburrecida e estereotipada. Engenheiros precisam saber se comunicar verbal e graficamente. Está nos documentos de formação da área deles. Ou seja: estamos diante de um profissional que precisa desenvolver várias competências de comunicação. Pobre sou eu que só me dediquei às pautas dos cadernos e que mal traço um desenho de menina e casinha. Ana Elisa Ribeiro |
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