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Terça-feira, 27/10/2009 Indignação, de Philip Roth Rafael Rodrigues Philip Roth em Nova York. Crédito da foto: Corbis. Philip Roth, considerado por muitos como o maior escritor norte-americano vivo, tem sido, ao longo de sua carreira, agraciado com os mais diversos prêmios literários ― dentre eles o Pulitzer, conquistado em 1998 pelo romance Pastoral Americana. Há anos seu nome é um dos mais especulados para vencer o Nobel de Literatura. Além disso, é o único autor americano que, em vida, teve sua obra publicada pela prestigiada editora (que se diz sem fins lucrativos) Library of America. Com um currículo desses, Philip Roth poderia simplesmente ter parado de escrever. Ou fazer como a maioria dos escritores consagrados, que, a partir de determinado ponto de suas carreiras, parecem ter resolvido publicar trabalhos no máximo razoáveis, que em nada condizem com suas melhores obras, muitas vezes fazendo arremedos de si mesmos ― como vem acontecendo com Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, por exemplo, e, dizem as línguas ferinas, com Gabriel García Márquez e João Ubaldo Ribeiro. Mas não. Roth vem, do alto de seus 76 anos, publicando livros que, se não são obras-primas, ao menos correspondem às expectativas dos leitores e dos críticos. Homem Comum, por exemplo, penúltimo livro do autor publicado no Brasil, é uma obra tão impactante que ecoa na mente do leitor durante meses ― e isso pode durar anos. Nele, Philip Roth fez uso de toda a simplicidade de que foi capaz para contar a história de um homem comum, um homem irrelevante para o resto do mundo ― como é a maioria dos homens. Seu talento para executar esta novela, uma obra valorosa, foi interpretado por mim mesmo, anos atrás, como uma tentativa não tão bem-sucedida de escrever uma obra-prima. Felizmente, tenho agora a possibilidade de reconhecer minha avaliação falha e de não cometer novamente o mesmo erro com Indignação (Companhia das Letras, 2009, 176 págs.), mais recente romance de Roth publicado aqui. A narrativa simples, linear, tradicional ― ou seja, sem floreios ou transgressões narrativas ―, além do estilo curto e grosso de Homem Comum estão presentes no novo romance. E, da mesma forma que a obra anterior não arrebata o leitor logo nas primeiras páginas, Indignação faz isso aos poucos, de maneira gradual, precisa e poderosa. Mas se em Homem Comum a velhice era motivo de ojeriza, no novo livro a juventude é que é a vilã. Marcus Messner, um jovem de dezoito anos, é o protagonista e narrador do livro. Nascido em Newark, mesma cidade onde nasceu Philip Roth, Marcus é filho de um açougueiro kosher ― isso significa que a carne vendida por ele obedece a lei judaica; vale citar a explicação de Marcus sobre a diferença entre uma carne kosher e uma carne "não kosher": "(...) para tornar o animal kosher, era necessário retirar todo o sangue. Num abatedouro não kosher, podem dar um tiro no animal, podem dar uma pancada para deixá-lo inconsciente, podem matá-lo da forma que quiserem. Mas, para ser kosher, o animal tem de morrer devido à perda de sangue.". Este trecho, mais próximo do fim do livro, dá uma maior noção a respeito da personalidade do pai de Marcus, porque mesmo depois de seu negócio perder clientes para um supermercado recém-inaugurado que vendia carne mais barata, mesmo ela não sendo kosher, ele manteve a tradição judaica, embora isso representasse uma considerável queda no rendimento do negócio. Narrando a história de sua vida, Marcus revela também um pouco da história da família Messner e da situação política de seu tempo ― a ação do romance acontece durante o final do ano de 1950 e vai até o início de 1952, ou seja, um pouco depois do início e pouco antes do fim da Guerra da Coréia, que termina em 1953. Logo no início do livro ficamos sabendo que dois primos de Marcus morreram em combate durante a Segunda Guerra Mundial. Com a Guerra da Coréia acontecendo, Marcus tem medo de ser ele próprio recrutado e morrer como os primos. Mas medo maior tem seu pai, que, desesperado, tentando evitar que o filho tenha o mesmo destino de seus dois sobrinhos, faz justamente o contrário e o empurra, involuntariamente, para as frentes de batalha. Durante as primeiras páginas de Indignação, tem-se a impressão de que este é um livro, acima de tudo, sobre a relação entre pai e filho ― tanto que a mãe de Marcus tem uma participação mínima na história, se comparada com a do seu pai. O tema é, sem dúvida, bastante presente, mas não chega a ser o principal. O cerne de Indignação é, na verdade, a inconsequência juvenil, a sensação que os jovens têm de que podem abraçar o mundo, a arrogância que os faz pensar que sempre têm razão e que seus pais, nascidos em "outro tempo", não sabem mais de nada, afinal, o mundo mudou, o mundo sempre muda, a toda hora. Mas é o próprio Marcus, e não seu pai, quem sela seu destino. Estudante de direito na pequena universidade Robert Treat, localizada no centro de Newark, ele é o primeiro Messner a entrar na faculdade. Jovem batalhador, que desde cedo ajudava o pai no açougue, Marcus é o aluno perfeito, o filho (único) perfeito. Tira notas altas, é bem comportado, o orgulho dos pais. Nada mais justo que seu pai ter uma grande preocupação com o futuro do filho. Mas a preocupação é excessiva e ele passa a monitorar todos os seus passos, inclusive saindo de casa para procurá-lo quando ele não retorna no horário combinado, mesmo que o atraso seja de poucos minutos: "(...) o que tinha enlouquecido meu pai era a preocupação de que seu adorado filho único estivesse tão despreparado para os perigos da vida quanto qualquer outra pessoa prestes a se tornar um adulto; enlouquecido ao fazer a assustadora descoberta de que um menino cresce, fica alto, supera seus pais, e que não é mais possível mantê-lo sob controle, que é necessário cedê-lo ao mundo." Não suportando os exageros do pai, Marcus abandona a Robert Treat e ingressa na pequena e religiosa universidade de Winesburg, a oitocentos quilômetros de casa ― mesmo sendo ele um ateu convicto. O contato com seus pais agora seria apenas por telefone e, apesar do esforço necessário para mantê-lo na nova universidade ― seu pai dispensara um ajudante, forçando sua mãe a voltar a trabalhar no açougue ―, para Marcus o que importa é que ele finalmente se livrara do zelo excessivo de seu pai. Em seu início na Winesburg, Marcus divide o quarto com mais três colegas, e tem com Bertram Flusser, o mais falastrão e o único inconveniente de todos, um desentendimento que o força a procurar outro quarto; e acaba encontrando, desta vez tendo como companheiro o silencioso e compenetrado Elwyn Ayres Jr. No começo Marcus não se incomoda com o fato de seu colega praticamente não interagir com ele, mas em pouco tempo isso passa a aborrecê-lo. Some-se a isso o fato de Elwyn ofender a garota com quem Marcus tivera um envolvimento e por quem se apaixonara e temos novamente o jovem Messner procurando outro quarto para ocupar. Desta vez consegue um vazio: o pior cômodo da universidade, não ocupado por alguém há anos. Nesse ponto do romance entra em cena o diretor de alunos da Winesburg, Hawes D. Caudwell, que tem uma função importantíssima na obra, apesar de sua participação não ser tão longa. O diretor convoca Marcus para uma conversa, afinal, não é comum um aluno mudar-se de quarto duas vezes em poucos meses. Mas não apenas de quarto, e sim também de universidade/cidade. É quando Roth mostra um outro olhar para a história, uma outra visão que não a de Marcus. Para o protagonista, tudo o que importa são seus estudos. Ele deseja tirar as melhores notas e ser o orador da turma. Ele quer apenas fazer a faculdade e não ser convocado para a guerra. Ou, se for convocado, que ao menos seja para ocupar o posto de tenente, e não o de soldado raso (o que aconteceria se ele fosse convocado sem ter ainda terminado a graduação, ou se fosse expulso da universidade...). É por isso que ele faz o possível para se esquivar dos problemas que aparecem. Mas o que Marcus pensa ser "evitar", o diretor Caudwell entende como "fugir". Ou seja: Marcus fugiu de seu pai, fugiu de Betram Flusser e fugiu de Ewleyn Jr. Se há algo a lhe importunar, assim diz o diretor, Marcus não tenta conversar, compreender, chegar a um acordo: ele prefere sair pela porta dos fundos. E é justamente isso que sela o destino de Marcus. Ao tentar evitar problemas, ele se embrenha ainda mais neles. E atrai outros. O que se vê, a partir daí, é um jovem frágil, inconsequente, impetuoso e cheio de ódio. Talvez Marcus estivesse apenas, enquanto livre do trabalho que fazia no açougue, se vingando de todos aqueles anos nos quais cortou carnes, lavou latões de gordura e eviscerou galinhas pela cloaca, tudo a mando e por causa do pai, tudo feito a contragosto. Interpretar a transformação de comportamento de Marcus desta maneira não a torna correta, mas ao menos a explica. Ao fim da obra temos, em vez de um jovem inteligente, cordato, razoavelmente belo, de boa índole e com um grandioso futuro pela frente, um rapaz perdido, com sua vida comprometida por suas próprias ações e decisões. As últimas páginas do romance, assumidas por outro narrador, pois Marcus já não é capaz de prosseguir contando sua história, resumem o propósito de Indignação: mostrar ao leitor "a forma terrível e incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais". Indignação é, tanto pela forma, quanto pelo conteúdo, um livro soberbo que, se não é uma obra-prima, chega muito perto disso. Para ir além Rafael Rodrigues |
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