|
Quarta-feira, 4/11/2009 Exógeno & Endógeno Guilherme Pontes Coelho Sedução, joguinhos e teatro. Adoro colecionar histórias de sedução, fictícias ou supostamente reais. A maneira como cada um lida com o assunto sexo oposto é sempre interessante. Não falo de relacionamento a longo prazo, nem comprometimento sincero, nem nada mais duradouro, como amizade colorida, entre homens e mulheres. Me refiro à conquista pura e simples, o primeiro round. Joguinhos de sedução e interpretação de personagens na hora da conquista rendem historietas boas de ouvir. As conquistas de mulheres e homens seguros e resolvidos são muito simples, quase não têm enredo. Mas quando algo, seja o que for, se coloca entre o casanova ou a amazona e a sua confiança, aí, colega, a lista de subterfúgios e artimanhas para driblar o "obstáculo" é looonga. Por exemplo. Um antigo colega só se sentia à vontade para seduzir se estivesse a bordo do seu possante Chevrolet. É um homem magro; não é feio, mas nunca presenciei suspiros que ele tenha causado. Aparentemente saudável, corredor de fim de semana, peladeiro às quartas-feiras. Portador de um nome composto pouco lisonjeador, que não direi, mas é do tipo Marcelo Wallace, nome pelo qual o chamarei. Mas, até aí, nada de mais. A gente tem de lembrar que não foi a pessoa que escolheu o próprio nome, infelizmente. E eu, francamente, não sei se foi isso que minou a confiança do colega. Porque até a aquisição do seu sedã magnífico, ele tivera poucas namoradas. Poucas mesmo, umas duas ou três. Eu não lembro, e não sei se são dados confiáveis, por serem via "o próprio", mas duas delas foram na faculdade. Faculdade na qual se formou em administração. Formado, fez concurso. Passou. Comprou um Vectra (veja você...) e aterrorizou. Nasceu um casanova. Estar sentado num bar e exibir a chave não convencia. Estar dirigindo e paquerar coroas pilotando coisas tipo BMW Z3, muito menos. A magia estava em abordar pedestres desamparadas ou cinderelas a bordo de abóboras populares, sem ar-condicionado nem som potente. Não que Marcelo Wallace fosse um praticante do dogging, até porque não tenho esses dados, mas estar seguro de si dependia de outra coisa, o automóvel. Marcelo Wallace desenvolveu uma técnica apuradíssima de conquista motorizada. Que tipo de carro a vítima deve dirigir, se tem ou não adesivos de "bebê a bordo", de times de futebol, para não conflitar com o seu, de ministérios, tribunais ou autarquias, para saber onde a moça trabalha e se ficaria perto de onde ele trabalha; se os pneus estão descalibrados ou carecas, porque isso rende um xaveco em posto de gasolina, na fila de calibragem; se o carro está novo ou velho, porque, pelo que captei, é mais fácil chamar a atenção da garota se ela estiver numa carroça aos pedaços ― a novidade de um carro novo, com direito à breguice de bancos ainda envoltos no saco plástico da concessionária, pode deixar a presa imune a esse tipo de investida motorizada. Um estrategista do amor a quatro rodas. A noiva dele, advinha! Fruto da paquera automobilística, nas ruas planas do Plano Piloto. Uma observação rápida. Essa história me lembra o livro John Keegan, Uma história da guerra, no trecho em que ele fala da invenção das bigas e sua importância para o combate, no capítulo três, coincidentemente intitulado "Carne". Keegan, via o historiador Stuart Piggott, diz que "o veículo rápido e vistoso confere ao seu dono prestígio social e fascínio sexual". Soube recentemente que Marcelo Wallace está de carro novo. O mais curioso no caso dele não é a singularidade, ou, se preferir, limitação, para conquistar. É o quanto o sujeito se transforma do pedestre para o piloto. É algo como Clark Kent e Superman. Convenhamos, e agora me refiro a você, homem, meu colega de gênero, você conhece alguém que "seduza nas onze"? Desconheço histórias de casanovas, a não ser o próprio Casanova, que tenham a mesma alta performance num ensaio de escola de samba, numa mostra de curtas do cinema europeu, num show do Krisium, nas areias do Balneário Camboriú, numa rave na Chapada dos Veadeiros, nos chats do Terra e no bingo mais próximo de sua casa, abordando tanto recém chegadas à maioridade civil quanto MILF's, incluindo aí todas as variantes estéticas de proporções, cores, cheiros, etc. O mesmo grau de aproveitamento em ambientes e com alvos tão díspares é incomum. O caçador vai por onde mais lhe agrada, nos meios onde estiver mais bem adaptado ou até onde seus talentos o levem. Nosso don-juan piloto, fora do carro, tinha a confiança de um Marvin. Era indispensável, e esse é todo o tutano da questão, ser visto pilotando seu KITT. Marcelo Wallace precisava saber que a presa tinha consciência de sua posse. Seu talento? Ter adquirido um automóvel. Outro exemplo, mas noutra direção. Um dos meus melhores amigos descobriu tarde um talento latente. Vou chamá-lo de Senhor L. Ele é livreiro e bibliófilo. Lê Santo Agostinho em latim e tem uma invejável biblioteca particular de lógica e epistemologia. Foi ele quem me apresentou a poesia de Raul de Leoni e os trabalhos do frei Damião Berge. Quem me explicou de forma didática e pé no chão o Desespero Humano, de Kierkegaard (embora eu já não me lembre do sumo da aula). Quem sempre me avisa dos lançamentos de livros sobre demonologia. Um cara chegado numa pinga, à maneira hedonista de antigamente. Um cara aparentemente circunspecto e taciturno, com uma quedinha para melancolia, e solitário. Características que se intensificaram depois que se divorciou. Egresso de um relacionamento de mais de década, Senhor L. havia desaprendido a "chegar junto". Quando aquele homem de cenho franzido e boné siciliano entrava num ambiente, se percebido fosse, seria culpa da seriedade estampada no rosto e do tom imperativo com que diz curtas sentenças a estranhos. A aura natural de mistério que uma pessoa assim carrega era o que o salvaria depois. Porque o segredo deste homem, o talento latente que mencionei, só teria crédito, e plausibilidade, se misterioso ele fosse. Convencido um dia por outros amigos solteiros (ou mesmo casados em jornadas clandestinas), Senhor L. deixou os livros em casa e foi se aventurar na balada. Nenhuma biblioteca jamais superará o poder da carne. Senhor L. deixou Tomás de Aquino em casa, entrou em seu Galaxy cheirando a seiva de alfazema e partiu para o então desconhecido mundo da conquista. Do qual não saiu nunca mais, pois, para espanto geral ― e próprio ― Senhor L. descobrira ser um exímio dançarino de forró. Um talento natural, intrínseco, pungente. Um dom portentoso, de causar ovulações ctônicas a cada performance. Hoje, Senhor L. é um feliz conquistador, à sua maneira. Nada de passeios solares e risonhos ou culturais e afetados. Seu habitat são as noites nas cidades satélites do Distrito Federal, angariando mais e mais aquisições a seu harém. Qual um demônio, Senhor L. não quer causar primeiras impressões estarrecedoras. Espera pacientemente sua vez de ir à pista de dança e, depois que a primeira voluntária lhe oferecer a mão, já sabe que a noite será sua. Eis a confiança de um homem em si mesmo. Sem alardes, discreto, calmo, Senhor L. tem diamantina confiança em seu poder forrozeiro. Ah, o jogo, o teatrinho da sedução. Boa sorte. Guilherme Pontes Coelho |
|
|