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Segunda-feira, 16/11/2009 Charles Darwin (1809-2009) Ricardo de Mattos
"Parece-me que, na discussão de problemas concernentes à Natureza, não se deveria começar com a autoridade de passagens das Escrituras, mas com as experiências sensíveis e com as demonstrações necessárias." (Galileu Galilei) Erasmus Darwin II ― Antecessores de Darwin Em qualquer área do conhecimento, a busca de antecedentes leva-nos em geral à Antiguidade Clássica Ocidental, visto que suas investigações, si não foram as únicas preservadas, são as mais difundidas. Dificilmente fala-se de Galileu ou Kepler sem mencionar Ptolomeu. Assim, o enciclopédico Aristóteles poderia acabar sendo indicado como antecessor remoto de Darwin. Não almejamos tal distância a fim de não perdermos o rumo e ferirmos o propósito. Porém, quatro pensadores mais próximos a Darwin não podem ser esquecidos: Linnaeus, Erasmus Darwin, Lamarck e Thomas Malthus. O cientista sueco Carl Linnaeus (1707-1778) é considerado o criador da taxinomia ou classificação biológica. Sua pretensão foi organizar sistematicamente tudo o que pudesse ser encontrado na Natureza, dos minerais ao homem. Para isso, criou a classificação binomial latina, ou seja, para cada elemento um nome composto em latim. Assim, qualquer que seja o nome regional da onça pintada, graças a Linnaeus ― ou Linneu ― a identidade científica do animal é unificada: Panthera onca. Nomeados os seres, necessário fez-se arrumá-los em espécies, gêneros, classes, filos etc. Sua principal obra foi o Sistema da Natureza, na qual estabeleceu as bases sobre a qual a taxinomia trabalharia depois. Curioso descobrir que o esquema de Linnaeus abrangia os quadrúpedes, as aves, os anfíbios ― mas não os répteis ―, os peixes, os insetos, os vermes e a classe dos "paradoxos", que incluía o unicórnio e o dragão. Caso sua ordem pareça mera curiosidade, deve ser lembrado que as atuais análises de DNA mitocondrial e de DNA nuclear levam os cientistas modernos a cogitar a definição dos animais existentes, conforme o parentesco, em quatro "superordens", uma das quais agruparia o gato, a foca, a baleia e o cavalo. Pode-se dizer que este começo de organização foi relevante para Darwin, pois permitiu-lhe enxergar certa ordem natural e daí desenvolver suas ideias. As espécies elencadas surgiram "prontas", na conformação em que começaram a ser estudadas pelo homem? Seriam criaturas isoladas ou relacionar-se-iam umas com as outras? Haveria algum tipo de escala? Linnaeus iniciou a arrumação da Biblioteca da Vida que seria estudada posteriormente por Darwin. E por falar em biblioteca, com a morte do sueco, sua viúva vendeu seus livros, manuscritos e coleções ao inglês James Edward Smith, quem fundaria a Linnean Society of London, na qual Darwin anunciaria sua teoria em primeiro de julho 1858. O médico inglês Erasmus Darwin (1731-1802) foi o avô paterno de Charles Robert. É apresentado pela História como pessoa que se caracterizou pelo apetite intelectual equivalente ao gastronômico. Foi filósofo, empresário, naturalista e poeta. Escreveu em versos o épico Zoonomia, abordando os aspectos evolutivos que seriam desenvolvidos cientificamente no século XIX por seu neto. Fica a impressão do entusiasta, de quem chegou à beira da descoberta, mas não foi adiante tão somente por falta de método. No ensaio autobiográfico encomendado por sua editora alemã, Darwin afirma que "...sentiria enorme deleite se pudesse ler um trabalho desse tipo, escrito por meu avô, retratando sua mentalidade e descrevendo o que ele fez e como fez...". Sobre o poema avoengo, impressionou-se com a primeira leitura, mas passada uma quinzena de anos criticou-o pela "enorme dimensão de ideias teóricas em relação ao baixo número de ocorrências passíveis de serem demonstradas". Não passou desapercebido ao francês Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) que as espécies animais deveriam dar uma "resposta adaptativa" aos constantes desafios ambientais. Os seres tramitariam das formas mais simples às mais complexas, desenvolveriam os órgãos mais adequados à sobrevivência, bem como adquiririam características úteis e depois as transmitiriam aos seus descendentes. Como se pode supor, as modificações das espécies seriam desencadeadas por fatores externos. É o exemplo clássico da girafa: no correr de milênios, adquiriu o longo pescoço a fim de alcançar as folhas das copas das árvores. Tal hipótese sofreria da "síndrome de Pangloss", para quem os narizes desenvolveram-se para sustentar os óculos. Não foi o pescoço que cresceu, mas os espécimes de pescoço maior foram os melhor sucedidos nas savanas e os cruzamentos constantes definiram a característica com o auxílio dos séculos. Em áreas onde predomina a vegetação arbustiva, continua existindo o okapi, um girafídeo "curto". Lamarck foi elo significativo no encadeamento do pensamento científico, mas suas especulações foram ajustadas por Darwin quando as colocou frente a frente aos fatos, e tanto um quanto o outro não pôde contar com a abordagem genética. Por fim, deve ser dito algo sobre o pastor e economista inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834). Entre suas obras destacam-se os Princípios de economia política e o Ensaio sobre a população. No Ensaio, expõe suas concepções filosóficas e econômicas visando rebater Condorcet, Godwin e Smith e apresenta a teoria que Darwin enxertaria em suas reflexões naturalistas. Malthus observou que "...o poder de crescimento da população é indefinidamente maior que o poder que a terra tem de produzir meios de subsistência para o homem". Segundo este ponto de vista, as guerras teriam relevância econômico-social por manter a população num patamar sustentável. Prevaleceria, portanto, o vencedor da guerra, o mais forte. A leitura d'A Origem das Espécies ganha em qualidade e compreensão caso os termos "guerra" e "luta" sejam entendidos na acepção de "esforço" e detrimento do sentido de "duelo". Mencionamos isso porque ainda é atribuído a Darwin a afirmação que na luta das espécies, venceria a mais forte, ou o indivíduo simplesmente mais forte. Muitas fontes formaram a concepção darwiniana, permitindo a conservação da interdisciplinaridade vigente. Alfred Wallace III ― Contemporâneos de Darwin (1) ― Wallace Alfred Russel Wallace viveu entre 1823 e 1913. No referente à Teoria da Evolução, há uma tendência cada vez maior em chamar Wallace para ocupar, merecidamente, o podium ao lado de Darwin. Sozinho, Wallace já seria reconhecido como fundador da biogeografia evolutiva, vertente que estuda o habitat das espécies e o que as vincula a ele. Sua formação foi a de um autodidata, sempre de cunho naturalístico. Tanto que em 1848 também veio parar no Brasil para coletar espécimes da fauna e da flora, que depois seriam enviados a Londres para estudo e venda a colecionadores. Enquanto Darwin aportou em Salvador e no Rio de Janeiro, Wallace dirigiu-se à Amazônia. Observando macacos nas duas margens dos rios largos, percebeu a diferença entre as espécies de um lado e de outro, tirando daí conclusões a respeito do isolamento geográfico e da especiação. De volta à Inglaterra, mal teve tempo de esquentar a cadeira e zarpou rumo à Indonésia ― então dita Arquipélago Malaio ― e continuou seu trabalho e seus estudos. Até hoje é estudada a "Linha de Wallace", limite geográfico que separa nitidamente mamíferos placentários de um lado e marsupiais de outro. Quando a maleita derrubou-o, aproveitou o repouso forçado para organizar seu pensamento e escrever o ensaio intitulado "Sobre a tendência das variedades de partir indefinidamente de um tipo original". Como já era correspondente de Darwin, tomou a liberdade de enviar-lho texto com o pedido de analisar sua pertinência. Darwin recebeu-o em nove de março de 1858. Wallace chegou ao Brasil em 1848, ainda um curioso. Dez anos depois, enviou ao colega sua teoria "pronta", sem saber do minucioso e discreto trabalho que este desenvolvia desde 1838. A surpresa de Darwin não deve ter se limitado à identidade teórica, mas também ao embasamento fático. Exigente como era, não se abalaria com mera especulação. Não lhe restou alternativa além do anúncio conjunto, enviando à Linnean Society o ensaio de Wallace e um apanhado de sua própria pesquisa e conclusões no mesmo sentido, o que foi considerado surpreendente e honroso para o mais jovem. Note-se que nenhum deles esteve presente: um fora do país, e o outro em casa, de luto pela morte recentíssima de um filho. Não é de se estranhar que em pouco tempo a teoria seja rebatizada com o nome de ambos. A apresentação unida deve ter contribuído para uma repercussão maior, visto dois nomes respeitados, um em cada canto do globo, alcançarem o mesmo ponto a respeito de fatos exaustivamente observados. Atualmente, de Wallace, estão disponíveis no Brasil os livros Peixes do Rio Negro e Viagens pelos Rios Amazonas e Negro, Viagem ao Arquipélago Malaio e Aspectos Científicos do Sobrenatural. Lembremos que ele encontrou na seleção natural a resposta sobre "como" se deu a jornada do homem e das demais espécies no planeta, e depois foi buscar no Espiritualismo ― irmão do Espiritismo ― o porquê desta caminhada. Percebeu que é muita grandiosidade para ser atribuída ao acaso. Para nós, "acaso" é apenas o campo ainda não cultivado pela Ciência. Fritz Müller IV ― Contemporâneos de Darwin (2) Não se pode deixar de lembrar ― ou mesmo apresentar ― o nome de Johan Friedrich Müller, ou Fritz Müller, como ficou conhecido. Nascido na Alemanha, obteve seu doutorado na Universidade de Berlim. Mudou-se para o Brasil, onde estabeleceu-se em Santa Catarina. Ligado ao magistério, foi professor de história natural e matemática. Utilizava seu tempo livre em passeios e pesquisas junto à Natureza, e pode ter sido o primeiro em território brasileiro a ter contato com A Origem das Espécies, mediante remessa da tradução alemã por seu irmão. Intrigado, desenvolveu pesquisas domésticas com pequenos crustáceos. Ainda que suas condições financeiras fossem precárias, escreveu Para Darwin ― Für Darwin ―, opúsculo no qual demonstrou seus testes e comprovou a teoria do inglês. Tal iniciativa conferiu-lhe a admiração de Darwin, que nas reedições da obra cita o nome de seu companheiro germano-brasileiro logo nas primeiras páginas. Darwin na Inglaterra, Wallace na Indonésia e Müller no Brasil consagraram o método científico e garantiram a solidez da apresentação da então nova teoria. Tanto que passada a primeira onda de contestação, a evolução das espécies foi sendo gradativamente aceita. Que é a seleção natural que promove a evolução, demorou-se um pouco mais a compreender, pois só no século XX o entendimento aperfeiçoou-se com a aproximação da Genética. O que nos encaminha a Mendel. Johann Mendel nasceu em 20 de julho de 1822, na cidade de Heizendorf. Ordenado sacerdote em 1847, seguiu o costume clerical e alterou seu nome para Gregor. Seu ingresso na ordem agostiniana foi a saída para que ele pudesse continuar os estudos que o animavam desde a infância. Observemos que se dedicando à botânica e à melhora da agricultura, atingiu a base da genética. As biografias sumárias falam de seus estudos com ervilhas, mas sendo responsável pelos jardins do mosteiro onde vivia e também professor de história natural ― biologia ― da Escola Superior de Brno, além de membro da Real e Imperial Sociedade da Morávia e Silésia, a imagem do padre às voltas com latas de mudinhas pode começar a ser afastada. De grandes observações surgem as grandes teorias que darão origem aos grandes estudos. Mendel resumiu suas análises em três Leis ― da Segregação, da Uniformidade e da Recombinação ― publicadas em opúsculos como os Ensaios com plantas híbridas e periódicos de pequena circulação. Talvez nem ele soubesse o passo dado, e menos ainda que suas teses, desenvolvidas e aliadas no século XX à de seu coevo, redefiniriam totalmente as Ciências. Voltemo-nos à Paleontologia, e seus nomes são logo mencionados. Passemos à microbiologia, no tocante à evolução e adaptabilidade dos vírus e bactérias aos novos medicamentos, e lá figurarão o monge e o quase-pastor anglicano nos estudos introdutórios. O ambiente ao qual um vírus deve adaptar-se é o corpo humano. No caso do vírus HIV, são suas mutações que preocupam os médicos. A reprodução viral está sujeita a alterações genéticas quase aleatórias, o que permite o surgimento de uma nova cepa resistente ao remédio utilizado no tratamento do paciente. A adaptação viral é contínua, permanecendo no organismo aquele resistente à droga ministrada. Observe-se que o organismo infectado não tem sequer tempo de desenvolver defesa contra as novas variedades virais. Como diariamente são gerados bilhões de vírus no organismo infectado, facilita-se o predomínio da variação genética vitoriosa sobre a medicação. É um trágico caso de seleção natural e ativação genética em tempo real. A doutora Verônica Müller, da Universidade Goethe, percebeu que suspensa a medicação, o vírus retorna à variedade original. Que os animais fora do controle seletor humano tendem a readquirir características originais é algo que Darwin afirmou logo no primeiro capítulo de sua opera magna, ao relatar suas experiências com pombos. No artigo "Dinossauros radicais", publicado pela National Geographic brasileira de fevereiro de 2008, John Updike expressa seu pasmo por certas formas ancestrais bizarras, cujo "sentido" hoje é objeto de especulação. Animais semi-fabulosos como o Megachoerus ― um javali gigante ― ou o Rodhocetus ― a baleia pernalta ―, por mais estranhas que pareçam hoje, foram bem sucedidas no tempo e lugar em que se manifestaram. Si extintas, é porque o ambiente mudou muito mais rápido que seu poder de adaptação, acrescentando o biólogo David Jablonski que a seleção pôde favorecer uma especialização vantajosa em curto prazo, mas vulnerável em períodos maiores. Ou ainda, como pontificou Darwin, a especialização foi tão direcionada, que restringiu demais a manutenção daqueles animais e plantas. Um exemplo atual seria o dos coalas, que só alimentam-se de variedades restritas de eucalipto e perigam com o esgotamento do bufê. A própria causa que levou à adaptação, enfim, pode ter desaparecido. Nada havendo de inútil na Natureza, o que intriga a Paleontologia tende a ser explicado pelas fases transitórias, bem como pela curta manutenção de certos ramos. Jean Baptiste Lamarck V ― A Origem das Espécies através da seleção natural A Origem das Espécies é obra muito mais fácil de ler do que aparenta. Qualquer um que tenha percorrido com proveito o ensino fundamental e o médio pode perceber diretamente sua grandeza. Em várias passagens, Darwin afirma ter escrito muito menos que o pretendido, o que nos parece uma virtude si calcularmos a carga de pesquisas e gráficos que ele desejava agregar à obra. O que parece mais certo é que descendo do Beagle, Darwin ainda não era evolucionista. Tanto que nas suas primeiras notas a respeito de todo o presenciado, ele cogitou na transformação, na geração direta de uma espécie por outra. Há porém quem afirme trazer ele em mente nesta ocasião as noções que duas décadas de intenso labor levaram-no à concepção das duas teses que sustentam o livro: a da evolução e a da selação natural. Lendo, deparamo-nos no texto com a amplidão do que podemos chamar o "museu darwiniano": plantas e animais selvagens e domésticos, passados e presentes, observações acerca da localização geográfica, desenvolvimento dentro e fora do útero, do ovo ou da semente. O primeiro capítulo do livro trata da variação em estado doméstico, no qual se parte da premissa: si os animais caseiros foram cruzados para que alcançassem e mantivessem determinado padrão, o que poderão informar as espécies selvagens, ainda mais com os descobrimentos da geologia e da paleontologia? As próprias criações domésticas contestavam a crença de que cada espécie estava pronta e invariável. Como é inegável o trabalho humano de séculos na busca de raças que melhor atendam demandas como a alimentar, de transporte e de vestuário, qual seria o impedimento de alterações relevantes surgirem natural e imperceptivelmente? O que fazendeiros e criadores realizam em poucos anos, a seleção natural obteria em milhares ou milhões de anos. A seleção doméstica das raças pode introduzir características perenes. O Retriever do Labrador foi desenvolvido para resgate das peças abatidas em caçadas. Nossa Carmela, na ânsia de agradar os da casa, sai em busca de qualquer coisa que julgue interessante e apresenta com sua peculiar alegria: galhos, pedras, lixo e animais mortos. E não sossega enquanto não lhe prestamos atenção. Nunca a ensinamos a buscar, trazer e apresentar, de forma que podemos crer com segurança na manutenção de um impulso próprio da raça, decorrente da seleção doméstica. Assim, Darwin partiu do evidente, do próximo, do cotidiano para alcançar e decifrar o menos aparente. Gregor Mendel VI ― O Encontro com a Genética. Tudo o que Darwin pesquisou e concluiu, ao que se sabe, foi sem o apoio de estudos genéticos. Dentre todos os animais e plantas em movimento adaptativo, predominariam aqueles cujas características físicas fossem as mais adequadas, e estas características seriam transmitidas aos descendentes. Por algumas décadas, pôde ser notado até a oposição entre genética e seleção natural. Os partidários da primeira garantiam que a evolução seria suficientemente garantida pela mutação dos genes. Desenvolveu-se, porém, uma proveitosa conciliação quando foram aproximadas conclusões genéticas e ideias sobre a seleção natural. Aqui nasce a Teoria Sintética da Evolução, ou Neodarwinismo, fusão acolhida com entusiasmo pelas novas luzes acesas e sedimentada pela descoberta do DNA em 1953. A concepção darwiniana foi expandida pelo raciocínio segundo o qual as espécies variam de acordo com mecanismos que ativam ― expressam ― ou desativam os genes "durante o desenvolvimento do organismo". Crível ou não, os estudos indicam um antepassado comum para todos os seres. Tratar-se-ia d'algo semelhante a um verme, existente por volta de 570 milhões de anos atrás, portador da carga genética necessária para o desenvolvimento de toda e qualquer característica posterior. Segundo Matt Ridley, na National Geographic de fevereiro deste ano, o ser humano não tem um só gene que lhe seja específico. Em número, possui tantos quanto um camundongo ou uma lagartixa, cerca de 21.000. Darwin estabeleceu que a evolução das espécies pela seleção natural segue o roteiro "variedade ― sub-espécie ― espécie", ao que se adiciona a necessidade de "expressão" de um gene por mais tempo para que a mutação ocorra e permaneça. Todo ser vivo possuiria um xilofone cujas teclas são percutidas pela insistência e afinadas pela necessidade. Alteradas as condições ambientais iniciais, por exemplo, os genes dos indivíduos sobreviventes de uma espécie são ativados, "reconfigurados" para outra forma de expressão. A sentença de Lavoisier ganha aplicação genética inimaginada pelo químico. "Nada se faz em biologia a não ser à luz da evolução", afirmou Theodosius Dobzhansky (1900-1975), biólogo e geneticista cujo nome tomou a dianteira na unificação entre evolucionismo e genética. De origem ucraniana, mudou-se para os Estados Unidos, onde atuou junto à Fundação Rockfeller e às Universidades de Columbia e da Califórnia. Coube-lhe pensar sobre o grande encontro e sistematizá-lo na "Teoria Sintética da Evolução Biológica". Suas obras são O homem em evolução, Genética e a origem das espécies e o ensaio anti-criacionista que repete a citação inicial deste parágrafo. Uma de suas alunas é a brasileira Hebe Laghi de Souza, professora de genética evolutiva das Universidades de São Paulo e de Campinas. Escreveu os livros Darwin e Kardec, um diálogo possível e Do pó das estrelas ao homem, de informações tão preciosas que nos tornamos seus devedores na escrita da coluna. Ao final de 150 anos, o resultado de tantas e tão profundas ideias sistematizadas, aproximadas e fundidas atende tão facilmente à Razão que nossa tendência é pensar que tudo sempre foi explicado assim. São constantes as descobertas tanto arqueológicas quanto laboratoriais confirmando o que um dia foram teorias e embasando conhecimentos sólidos. Lendo o surpreendente livro Na trilha da humanidade, do jornalista gaúcho Airton Ortiz, que refez o percurso mais provável do Homem desde a África até a América, admiramo-nos com a intimidade adquirida pelos conceitos aqui tratados, como se pode observar no seguinte trecho: "Descobertas científicas sugerem que uma mutação no gene humano associado ao tamanho do músculo da mandíbula, ocorrida há 2,4 milhões de anos, deixou-a menor, gerando um ser deformado para os padrões da época. A redução do tamanho da mandíbula e de seus músculos, no entanto, permitiu ao nosso 'aleijadinho' o crescimento do cérebro ― estava sobrando espaço na cabeça ―, dando a esses descendentes de uma das espécies de australopitecos, muitas gerações depois, a capacidade de desenvolver aptidões para a fabricação de ferramentas." Theodosius Dobzhansky VII ― Criacionismo e Desenho Inteligente Até no presente o Evolucionismo encontra adversários ferrenhos. Acastelam-se na Religião e de seus postos teimam em moldar a Ciência conforme suas suas visões simplórias. As notícias mais gritantes chegam dos Estados Unidos, onde é perene a luta do Estado para manter qualquer concepção religiosa afastada do ensino público, de forma a não privilegiar esta ou aquela crença. Os processos judiciais repetem-se, pois a cada passo os criacionistas ― opositores mais renitentes ― alteram o revestimento de suas concepções. No Brasil, prevalece a alternativa do ensino conjunto, mas não confiamos na lisura de certos professores nem nos critérios de aplicação geral da medida. Sabemos que justamente o Evolucionismo era o proscrito das escolas públicas, ao menos no Tenessee do primeiro quartel do século passado. Quando o professor de biologia John Scopes decidiu-se a ensiná-lo, foi processado no feito conhecido como o "processo do macaco". O resultado principal foi a divulgação da disputa, pois Scopes recebeu a pena de multa do valor de cem dólares, posteriormente cassada. Além disso, o ensino público acabou elegendo a explicação científica da origem humana, afastando qualquer entendimento vinculado a uma religião, resguardando o princípio constitucional da dissociação entre Estado e Igreja. Infrutífero o embate frontal, os criacionistas aquartelados no Discovery Institute adotaram a alternativa sutil de uma teoria apresentável como científica, mas que serve de máscara aos seus propósitos, a teoria do desenho inteligente ― intelligent design. Percebido o vazamento da tese para as escolas públicas, há apenas quatro anos teve lugar o "julgamento de Dover" visando reparar a intrusão. Curioso que foi na Wikipedia onde encontramos um longo e detalhado artigo sobre o assunto. Contrário ao criacionismo podemos citar Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do DNA humano. Em sua juventude acolheu o ateísmo, mas acabou por converter-se ao cristianismo católico e escreveu o livro intitulado A linguagem de Deus. Cientificamente, continua tão evolucionista quanto Richard Dawkins e Daniel Dennet. Acredita caber aos cientistas continuar procurando respostas para o que ainda está oculto, sem o "tapa-buracos" do desenho inteligente. Provavelmente Collins acorda com Thomas Henry Huxley, para quem a Ciência comete suicídio ao adotar um credo. Favorável ao desenho inteligente há o respeitável nome de John Lennox, matemático de Oxford, Inglaterra. Seu argumento mais ponderável é o de que a compreensão possível do Universo aponta, evidencia uma inteligência superior envolvida na sua criação, inteligência imensurável por padrões humanos. O vício revela-se no preenchimento de temporárias lacunas científicas com noções teológicas, criando uma desnecessária colcha de retalhos. VIII ― Ciência e religião As crescentes ondas de ateísmo e ceticismo correm a utilizar o pensamento darwiniano como apoio para suas tristes especulações. Tristes, porque empenham-se em explicar ao ser humano as dificuldades evolutivas enfrentadas e ultrapassadas, mas negam-lhe um sentido ou direção. Explicam-lhe de onde veio materialmente, mas recusam o propósito do imenso esforço, gerando frustração perigosa no campo psicológico e espiritual. Envolvem o nome de Charles Darwin, ao que parece, sem maior preocupação com o que ele realmente sentia ou pensava. Recorrem às fontes originais, escolhendo aquilo que mais se aproxima do argumento defendido. Pecam crentes e descrentes. Os primeiros continuam confundindo Deus e instituições humanas, dificultando qualquer discussão mais séria. Querem definir o sistema de trabalho divino, logo calculando quantas horas extraordinárias foram necessárias para que o Criador cumprisse Seu turno e entregasse ao homem um trabalho pronto e acabado. Então, sim, este Deus prestativo e obediente merece crédito. Poucos leram o trabalho de Darwin mas contestam-no previamente em honra ao rebanho. Os segundos, querem retirar do Homem sua própria justificativa, preferindo andar às cegas desde que não precisem prestar contas a alguém. Nossa edição d'A Origem das Espécies possui como adendo um Esboço autobiográfico escrito pelo próprio naturalista, a pedido da editora alemã que traduziu e publicou suas obras. Ao que parece, foi seu último texto escrito e divulgado, pois uma nota de rodapé informa que ele realmente teria deixado o mundo "pouco tempo depois". No penúltimo parágrafo, assevera: "Quanto aos meus sentimentos religiosos, acerca dos quais tantas vezes me têm perguntado, considero-os como assunto que a ninguém possa interessar senão a mim mesmo. Posso adiantar, porém, que não me parece haver qualquer incompatibilidade entre a aceitação da teoria evolucionista e a crença em Deus". Charles Darwin quase formou-se pastor anglicano. Reconheceu que a possibilidade de atuar junto a uma aldeia não lhe era desagradável, mas garantiu ter "escrúpulos em aceitar toda a doutrina da Igreja Anglicana". Podemos cogitar, mas não assegurar, que sua lentidão na elaboração da Teoria deveu-se ao rigor científico, ao cuidado nas pesquisas pessoais, e também ao seu sentimento religioso. Ao menos durante os anos de estudo, ele teve contato com a doutrina, dogma e preconceitos vigentes. Queremos crer que de alguma forma ele previa o rebuliço provocado pela publicação de um primeiro texto evolucionista, buscando assim precaver-se pela máxima reunião de fatos e experiências. O abalo provocado pela carta de Wallace talvez tenha-lhe provado que a hora havia chegado e o arcabouço garantiria a renovação do pensamento. Só não deveríamos ser tacanhos em exigir de uma só pessoa a revolução concomitante dos pensamentos cientifico e teológico. Que ao lado d'A Origem das Espécies fosse editada um tipo de Suma Teológica Evolucionista é querer demais. Nós kardecistas entendemos que, no tocante ao pensamento religioso, o passo fundamental foi dado no ano anterior, o de 1857, com o lançamento d'O Livro dos Espíritos em Paris. Fora do meio espírita, hoje, o fato pode passar despercebido, mas não deixou de haver alvoroço com direito a auto de fé promovido pelo bispo de Barcelona e religiosos de outras localidades. Cientes de que o senso fiel pertence ao foro íntimo e deve ser respeitado, bem como isentos de intenção proselitista, recordamos a coragem de Allan Kardec quando aconselhou que, onde Espiritismo e Ciência divergissem, a pessoa esclarecida deveria optar pela segunda. Prova disso veio com a questão da raça humana: a Doutrina de Kardec mencionou em suas origens a "perfectibilidade da raça amarela" e a inferioridade da raça negra. Comprovada cientificamente, através da genética, a existência apenas da espécie humana, este passou a ser o entendimento do kardecista desejoso de manter-se atualizado. O biólogo celular Kenneth Miller, da Universidade Brown, autor do livro Descobrindo o Deus de Darwin, explica que Deus não está, nem pode estar, na insuficiência das ciências em explicar as coisas, nem na ignorância humana. Imaginamos que a velocidade do progresso científico nos séculos XIX e XX tenha deixado o homem de certa forma ansioso em descobrir a resposta definitiva. Até certa época, buscou a solução apenas na Fé. Hoje, tende a procurar apenas na Razão. Quando conciliá-las e encontrar o equilíbrio, será natural deparar-se com as respostas procuradas. Entendemos que a teoria evolucionista excluiu o capricho, o arbítrio, da lista dos atributos divinos. Não nega a criação, mas amplia magnificamente sua compreensão. Ricardo de Mattos |
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