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Quinta-feira, 3/12/2009
Internet - sociedade = direito?
Vicente Escudero

A nova queridinha dos economistas deu um passo de chihuahua para o cumprimento dos direitos humanos no começo de novembro. A manchete deste nobre ato nos jornais estrangeiros salta aos olhos de qualquer pessoa com o mínimo de bom senso e provoca gargalhadas: a China proibiu que clínicas para tratamento de viciados em internet apliquem castigos físicos nos pacientes, durante o tratamento.

Este é o retrato do país que vive a estranha simbiose entre o capitalismo e o comunismo. Se o livre mercado sustenta o crescimento econômico, a repressão e o apparatchik, repaginado pela queda do verde oliva, sustentam o livre mercado. Enquanto seus cidadãos caminham pela República, com milhões de iPods, celulares e traquitanas digitais, a coisa pública socialista, que pertence a todos desde que cada um faça parte de apenas um partido político, é controlada pelo governo sem qualquer concessão à livre manifestação do pensamento, ao direito de expressão. Se alguém duvida da capacidade de sedução dessa forma de governo, basta lembrar que nas últimas Olimpíadas a imprensa internacional deixou de lado a truculenta repressão do governo chinês a qualquer espécie de manifestação popular, para mostrar as belezas econômicas de seus shoppings gigantescos onde são vendidos, pasme, quase exclusivamente, produtos piratas.

E não é culpa dos jornais. Se o regime unipartidário chinês é bem recebido em todo o mundo não é pela imagem transmitida na imprensa, pois o papel que diminui nas prateleiras das bancas também não pesa na balança comercial. Todos os países querem negociar com a China, ingressar no mercado consumidor na casa dos dez dígitos, mesmo com suas restrições aos direitos individuais.

Os direitos individuais. Essa questão secundária, tratada como acessório quando o parceiro comercial é relevante, parece ter perdido espaço depois da crise do subprime em 2008. Neste contexto, surgiu a maior necessidade de controle, uma repulsa psicológica da massa contra a liberdade desmedida diante do temor de uma nova crise, incidindo sobre instrumentos que pouco têm a ver com a causa do problema. E parece que vai sobrar para os direitos autorais e a internet.

Enquanto Obama visita a China, discursa contra as mazelas das restrições à liberdade de manifestação e de expressão, costura nos bastidores um acordo secreto com a União Européia, Coréia do Sul, Canadá e Japão para restringir a troca de arquivos protegidos por direitos autorais na internet. Ninguém conhece seu conteúdo, mas especula-se que o tratado imporá regras rígidas como as discutidas pela União Européia, de desligamento da conexão no caso de troca de arquivos protegidos por direitos autorais sem permissão.

Hu Jintao sorri. Enquanto o discurso politicamente correto do presidente americano dissimula a atitude, os duzentos e oitenta mil funcionários do governo chinês que trabalham diuturnamente filtrando o conteúdo dos chats, e-mails e todo tipo de mensagem trocada na internet, aplaudem. São cinquenta centavos de yuan pagos pelo governo por cada palavra digitada em defesa do regime socialista. O Kremlin também segue o exemplo: empresas de internet são financiadas para atacar sites contrários ao fantoche de Putin e realizar escutas nas conversas eletrônicas.

O surgimento desses déspotas virtuais desencadeou uma onda de propaganda política nos fóruns de discussão, Twitter, Facebook e Orkut. Como retratou o jornal El País, o Comitê para Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, organização que possui cada vez mais seguidores no Facebook, não passa de uma manifestação da polícia religiosa da Arábia Saudita, que condenou o professor de escola secundária, Mohammad al-Harbia, a 40 meses de prisão e a 750 chicotadas em público por ter discutido a Bíblia e ter dado uma imagem positiva do Judaísmo aos seus alunos. Os cybertontos, na expressão do próprio jornal, definitivamente não são mais os governos.

Nesta discussão, a proteção do direito autoral e da privacidade acabam seguindo direções opostas, que se encontram no mesmo destino. Os moldes atuais da proteção ao direito autoral não comportam as características da internet, de rápida troca de arquivos sem intermediários (como o Pirate Bay, que noticiou a descentralização o download dos torrents dos navegadores, sendo a busca realizada diretamente nos computadores que armazenam os arquivos), nem mesmo consideram as peculiaridades do mercado consumidor, cada vez mais disposto a pagar menos por conteúdo. Já a proteção à privacidade parece cada vez mais frágil diante de governantes com pretensões hereditárias. Enquanto é aguardado o recrudescimento do direito à privacidade e a maior elasticidade da proteção aos direitos autorais, governos e empresas caminham na contramão, acreditando na possibilidade de mudança da realidade através da lei, sem considerar suas bases de sustentação.

Os valores estão postos à mesa. E não são aqueles buscados por Rupert Murdoch, versão em carne e osso da Microsoft para os jornais. De um lado, a sociedade passou a utilizar os bens culturais de forma ampla, sem a intermediação de empresas ou governos, do outro, seus proprietários reclamam o pagamento. Se os fatos que norteiam o direito estão associados ao período histórico-cultural da sociedade, ainda que exista um conjunto de valores constante sobre cada um deles, é possível que exista o rompimento das normas estabelecidas, para a criação de uma nova ordem jurídica, quando ocorrem movimentos de massa em sentido contrário. Esta é a equação. Seu resultado, nem o Obama sabe.

Vicente Escudero
São Paulo, 3/12/2009

 

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